"Eu sou a chuva que lança a areia do Saara/ Sobre os automóveis de Roma". O trecho é da clássica música “Reconvexo”, interpretada pela famosa cantora brasileira Maria Betânia, e composta pelo seu irmão, o também consagrado cantor e produtor Caetano Veloso.
A letra da canção vai além da poesia ou da arte. Ela trata de um fenômeno meteorológico, que acontece todos os anos, no período de fevereiro a junho. Nos últimos dias, meteorologistas identificaram, a partir de satélites, uma enorme nuvem de poeira, deslocando-se, desde o deserto do Saara, na África, viajando pelo oceano Atlântico, e chegando às Américas.
Em plena Ditadura Militar no Brasil, Caetano Veloso vivia seu exílio na Europa. Ele compôs essa canção, depois de acordar um dia em Roma e se deparar com carros empoeirados, todos cobertos de areia. A poeira em Roma era consequência do mesmo fenômeno, observado na última semana, cujos episódios se repetem desde fevereiro.
Para esclarecer por que o fenômeno ocorre e o que ele provoca, o Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis) monitora o deslocamento da poeira do Saara, transportada pelos ventos, ao longo do oceano Atlântico. Todas as informações sobre o assunto, utilizadas neste post, foram enviadas pelo Laboratório.
A seguir, iremos explicar o fenômeno, bem como a tecnologia utilizada em seu monitoramento, a partir de 5 perguntas e respostas. Você também vai entender como a poeira do Saara, associada aos ventos do ciclone-bomba, ocorrido no Sul do Brasil, em 30 de julho, provocou o lindo fenômeno de céu colorido no Nordeste, na semana seguinte.
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O transporte de poeira do Saara, a longa distância, faz parte da combinação de fenômenos atmosféricos locais e de grande escala. No verão do Hemisfério Norte, o aquecimento do Saara ultrapassa a temperatura de 40 °C, durante as tardes.
As altas temperaturas levam à formação de baixas pressões térmicas e à intensificação dos ventos, sobre algumas áreas do deserto.
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Com os ventos de leste (alísios), intensificados sobre as vastas terras áridas, no maior deserto quente do mundo, a turbulência gerada, próximo a superfície, suspende poeira na atmosfera. Forma-se, então, uma enorme nuvem de ar do Saara — uma massa de ar muito seco e com poeira do deserto africano.
Todos os anos, entre a primavera e o início do outono, no Hemisfério Norte, é possível ver a jornada da poeira do deserto. Um gigantesco volume de partículas do Saara cruza o Atlântico e atinge outras regiões do Planeta.
O vídeo acima mostra a vasta nuvem de poeira do Saara, cobrindo o Caribe, no dia 24 de junho de 2020, enquanto seguia viagem. Hoje pela manhã, a pluma atingiu o Texas, nos Estados Unidos. A qualidade do ar, na maior parte da região, é considerada perigosa e eles alertam a população para tomarem medidas de proteção.
A gigante nuvem de poeira, oriunda do deserto do Saara, intensificou-se em 2020. Segundo especialistas, o fenômeno atingiu um tamanho e concentração não vistos em meio século. Desde fevereiro, meteorologistas observam que eventos similares atravessam o Atlântico.
No último dia 18 de junho, a enorme nuvem de poeira foi trazida pelos ventos, viajou pelo Atlântico e atingiu as Américas. A mancha passou pelo extremo norte da Amazônia, em parte da Venezuela, no Caribe e agora chega ao sul dos Estados Unidos.
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Parte da nuvem é formada, entre outros elementos, por partículas de poeira no ar, os chamados aerossóis. A presença desses resíduos na atmosfera contribui para a formação de nuvens e, consequentemente, de chuvas. No caso da floresta amazônica, parte dos aerossóis é oriunda do deserto do Saara.
Em geral, essas partículas são confinadas nos primeiros quilômetros de altura da troposfera. Por isso, a poeira que veio do Saara pode ser uma das responsáveis por aquela tempestade de fim de tarde, típica de algumas cidades da Amazônia brasileira, como Belém (PA) e Manaus (AM).
Com essa poeira na atmosfera, ocorre chuvas com resíduos da poeira, que fertilizam as terras da Amazônia, por conta da presença de substâncias como fósforo.
Impactos positivos. Além de contribuir com a fertilização das terras da Amazônia, o fenômeno inibe tempestades tropicais, que poderiam formar furacões, no Atlântico. Ao longo da trajetória para oeste, nuvens tropicais profundas costumam encontrar condições mais quentes e úmidas no Atlântico, transformando-se em grandes furacões.
Porém, durante a temporada de furacões no Atlântico Norte, a nuvem gigante de poeira do Saara ajuda a evitar ciclones tropicais. Quando atingem a nuvem de ar seco do Saara, no Oceano, esses eventos perdem intensidade e podem se dissipar.
Por outro lado, uma maior quantidade de poeira faria com que se formassem mais nuvens pela região oceânica, favorecendo o nascimento de furacões. Assim, o efeito dessa poeira do Saara na formação de furacões ainda é incerto.
Impactos negativos. A enorme nuvem de poeira, vinda do Saara, compromete a qualidade do ar e representa riscos para a saúde humana. O ar seco e empoeirado pode afetar a pele e os pulmões, pela redução da umidade, em pelo menos 50%.
O alto teor de partículas também pode ser nocivo às pessoas com problemas respiratórios, causando alergias e irritações nos olhos, especialmente durante a pandemia do novo coronavírus.
A animação acima mostra uma pluma de poeira do deserto, atravessando o oceano Atlântico. Ela foi produzida com imagens do satélite Meteosat-11, dos dias 20 e 21 de junho de 2020. O arquipélago do Cabo Verde é a região fora da África mais afetada pela poeira do Saara.
Os entusiastas do Sensoriamento Remoto certamente estão curiosos para saber qual tecnologia foi utilizada para detectar o fenômeno. De acordo com o meteorologista Humberto Barbosa, do Lapis, satélites meteorológicos, em órbita geoestacionária (circular), posicionam-se a 36 mil km da Terra, permitindo captar áreas da atmosfera, a partir de uma posição privilegiada.
As imagens da animação foram captadas e transmitidas pelo satélite Meteosat de Terceira Geração (MTG), em órbita geoestacionária, com alta resolução temporal (a cada 15 minutos). Esse intervalo permite o monitoramento contínuo do tempo e a tomada de decisão, por exemplo, pela Defesa Civil, no caso de risco de um evento meteorológico extremo.
De interesse particular do Brasil, são as imagens do Meteosat-11, localizado sobre o meridiano de Greenwich (0°), que monitora sua costa leste e todo o oceano Atlântico.
O pesquisador ressalta que satélites meteorológicos produzem uma enorme quantidade de dados, sendo necessário métodos específicos para extrair, filtrar e preparar dados, para criação de imagens de fácil interpretação e utilização.
A apresentação das cores nas imagens de satélites e a interpretação do que elas representam são muito importantes. Esses fatores permitem concluir sobre a presença de determinado fenômeno. É o caso de eventos como a nuvem gigante de poeira do Saara.
Para Barbosa, a utilização da tecnologia RGB proporciona aos pesquisadores um salto qualitativo, na interpretação de imagens de satélites, especialmente na área de monitoramento ambiental. Dessa forma, contribui para auxiliar na tomada de decisão, na gestão de políticas e no planejamento de respostas a desastres naturais.
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A interpretação das imagens de satélites, processadas digitalmente, com uso de técnicas de Sensoriamento Remoto, depende da capacidade da visão humana em discernir tonalidades, texturas e contextos, registrados nessas imagens.
A tecnologia RGB, ainda pouco utilizada no Brasil, permite que as imagens de satélites sejam vistas sob o espectro vermelho, verde e azul (daí seu nome corresponder às siglas, em inglês, das cores Red, Green e Blue). Quando combinadas, de diferentes formas, a tecnologia gera imagens impressionantes, com uma ampla gama de cores.
A interpretação de eventos, como a poeira do deserto africano, exige conhecimento das características das diferentes resoluções das imagens (espacial, temporal, espectral e radiométrica). Também requer experiência com uso de imagens multiespectrais, bem como conhecimento aprofundado em Meteorologia.
Essas imagens podem ser coloridas ou monocromáticas. Quanto mais nítidas, menos confusão visual causam ao especialista, que interpreta essas informações de satélite.
Assim, utilizar tecnologias adequadas à composição dessas imagens e das suas tonalidades, de acordo com o objetivo desejado, é uma ferramenta poderosa para sintetizar, em uma única imagem, uma grande quantidade de informações.
Desde o dia 05 de julho, é possível ver uma enorme nuvem de poeira, deslocando-se, desde o deserto do Saara, na África, viajando pelo oceano Atlântico e seguindo uma trajetória incomum. Desta vez, a areia do Saara cruzou o Atlântico e chegou ao Nordeste do Brasil.
A imagem de satélite mostra partículas de fumaça, vindas de queimadas da África, transportadas para o Deserto do Saara, graças à uma forma específica de circulação dos ventos. A concentração de fumaça das queimadas, no centro-sul da África, é bem maior, em cor escura, na imagem de satélite, ao contrário da poeira do deserto, em tom amarronzado.
A fumaça das queimadas, na África, e a poeira do Saara, explicam o fenômeno de céu colorido, em várias cidades do Nordeste, durante o nascer ou pôr do Sol, desta semana.
De acordo com o Lapis, o ciclone-bomba, que devastou o Sul do Brasil, no dia 30 de junho, deslocou-se, nos dias seguintes, para perto da costa sul da África. Os ventos a ele associados espalharam ainda mais incêndios, que ocorrem na região central da África.
Além de aumentar o alastramento do fogo, o ciclone-bomba também ajudou a espalhar poeira do Deserto do Saara, em função do seu padrão de circulação atmosférica.
Ao provocar divergências na direção dos ventos, formou-se uma área de alta pressão, com ventos calmos, céu ensolarado e pouca ou nenhuma chuva. Isso significa que o ar desce. Em baixos níveis, na superfície, o vento vai em direção ao Equador (os alísios).
Com isso, a poeira do deserto do Saara, carregada pelos ventos, associados ao ciclone-bomba, provoca esse efeito de um lindo céu colorido, no Nordeste.
O Lapis possui uma estação de recepção de imagens do satélite Meteosat-11, cuja distribuição é feita pelo Sistema EumetCast África.
Desde 2007, criou uma rede nacional de obtenção de dados de satélites digitais, em tempo real, a partir do serviço de disseminação de dados da Organização Europeia para a Exploração de Satélites Meteorológicos (EUMETSAT).
Esses conhecimentos foram reunidos, pelo Lapis, de forma organizada, em um passo a passo prático, no Livro “Sistema Eumetcast” e em cursos 100% online. Aprenda a produzir mapas temáticos e imagens de satélites. Clique aqui para conhecer o Livro ou acesse a página de inscrição nos treinamentos online.
*Atualizado em: 08.07.2020, às 10h30.
LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].
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