O desafio do acesso à água nas áreas mais vulneráveis do Brasil



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Vinte e dois de março, Dia Mundial da Água. Em 2019, a data é dedicada pelas Nações Unidas para debater a situação dos grupos sociais excluídos do acesso à água potável, para suprimento das suas necessidades vitais.

No último dia 19 de março, foi lançado o novo Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, intitulado “Não deixar ninguém para trás”. Embora, desde 2010, o acesso à água seja reconhecido internacionalmente como um direito humano universal, o documento mostra que mais de 2 bilhões de pessoas vivenciam uma situação de alto estresse hídrico, não dispondo dos serviços mais básicos de abastecimento de água e de saneamento.

O desafio é enorme e significa que três, em cada dez pessoas, não têm acesso à água potável segura. Além disso, cerca de 4 bilhões enfrentam escassez severa de água, durante pelo menos um mês do ano. Esses números mundiais ainda escondem as desigualdades significativas que há entre e dentro de regiões, países, comunidades e até mesmo bairros.

No Brasil, problemas relacionados ao abastecimento de água estão presentes em praticamente todos os municípios e afetam toda a população: rios e mananciais poluídos, aumento das demandas, conflitos pelo uso da água, perdas e desperdício, secas, ameaça de colapso no abastecimento e gestão ineficiente.

Todavia, em função de o tema do Dia Mundial da Água deste ano destacar grupos sociais excluídos, iremos discutir, neste post, a situação da população historicamente afetada pela seca, em áreas ambientalmente vulneráveis do Semiárido brasileiro.

A questão hídrica nas áreas mais secas do Brasil

No Semiárido brasileiro, os graves problemas de acesso à água potável afetam idosos, mulheres, crianças, deficientes, pescadores artesanais, pequenos agricultores, moradores de áreas rurais isoladas, de periferias, entre outros.

No Livro “Um século de secas”, foram analisados problemas cruciais de planejamento e gestão das águas no Semiárido brasileiro. Por se tratar de um elemento natural extremamente escasso na região, os autores destacaram a necessidade de fortalecer a estrutura de governança das águas, para garantir o acesso prioritário e os usos múltiplos desse recurso natural.

Em condições normais, as áreas semiáridas do Brasil podem ficar naturalmente secas por até 10 meses, sem falar na gravidade de quando essa seca se prolonga por anos consecutivos.

>> Leia mais: 10 lições dos países líderes em gestão sustentável das águas

Dentre os fatores meteorológicos que provocam a seca no Semiárido, está a influência dos oceanos Pacífico e Atlântico, que regulam as condições climáticas regionais, como é o caso do fenômeno El Niño e do Dipolo do Atlântico. Existem também outros fatores que contribuem para a condição de seca. Como ocorreu este ano, embora esteja configurado uma condição de El Niño, de intensidade fraca, os vórtices ciclônicos trouxeram chuvas para algumas áreas do Semiárido brasileiro e causaram seca em outras partes da região.

As políticas públicas implementadas na área semiárida do Brasil tiveram início em fins do século XIX. Desde então, os grupos sociais vulneráveis à seca enfrentaram as consequências mais danosas do desastre natural (fome, sede, doenças e mortes). Mulheres, crianças e idosos eram os segmentos da população que enfrentavam maior risco, diante da ameaça de desastre.

Os autores destacam, na obra “Um século de secas”, que segmentos sociais que viviam nas áreas mais secas do Brasil, vulneráveis social, econômica e ambientalmente, foram historicamente excluídos, discriminados e invisíveis no acesso às políticas públicas de água. Para conhecer o Livro, clique aqui.

Com base no levantamento de mais de cem anos de secas no Semiárido brasileiro, do início do século XX até os dias atuais, os autores pesquisaram as maiores lições históricas para uma melhor gestão e controle do uso das águas na região, nos dias atuais, de forma mais justa e democrática, o que não ocorreu durante a maior parte da história das políticas hídricas no Semiárido brasileiro.

“Um século de secas” é uma obra bastante abrangente, do ponto de vista de levantamento histórico das políticas públicas de água, em suas várias fases. O Livro aborda as políticas públicas desde o seu início, com a Inspectoria de Obras Contra as Secas (IOCS), atual Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), passando pela Sudene, até as ações mais contemporâneas, como é o caso das atuais políticas de tecnologias sociais hídricas, protagonizadas pela sociedade civil.

Os autores analisaram o alcance, a importância e as limitações das principais políticas públicas de acesso à água potável, implementadas desde fins do século XIX na região, e oferecem uma análise histórica interessante para apoiar a formulação de políticas nos dias atuais. 

Quem são os grupos sociais excluídos das políticas hídricas? 

No Semiárido brasileiro, historicamente, as mulheres rurais foram as mais prejudicadas pela exclusão no mapa do abastecimento de água. Elas foram as principais responsáveis por suportar o encargo de buscar água em fontes distantes. Despendiam um total de tempo que correspondia a mais de 36 dias anuais, somente no transporte de água.

Com a implantação de tecnologias sociais hídricas, houve redução para 12 dias no número total de famílias que ainda despendem tempo nessa atividade. O acesso às tecnologias sociais para armazenamento de água traz benefícios concretos para as mulheres, uma vez que elas têm seu trabalho reduzido e o tempo pode ser utilizado em outras atividades, inclusive para a geração de renda.

Mas como mostrado no Livro “Um século de secas”, a universalização do acesso a essas tecnologias ainda não é uma realidade no Semiárido. Além disso, a quantidade de água armazenada é insuficiente para atravessar os períodos de seca.

Da mesma forma, a história mostra que pequenos agricultores, marginalizados do processo de acesso ao conhecimento e a tecnologias, viam seus meios de produção completamente desestruturados durante a seca. Esse segmento produtivo enfrentava e continua enfrentando sérias dificuldades para se reerguer, muitas vezes ficando à mercê da ajuda pública dos governos.

Um dos capítulos do Livro “Um século de secas” mostrou que a mesma situação ocorria com os piscicultores artesanais. Por volta dos anos 1930, passou-se a incentivar no Nordeste o aproveitamento da água dos reservatórios para produção de peixes por pequenos produtores.

Todavia, esses segmentos sociais não tiveram acesso a tecnologias adequadas à sua realidade, tampouco foram oferecidas condições de formação para o domínio das técnicas adequadas à atividade por parte desses piscicultores. Além disso, frequentemente, os maiores beneficiados pelas políticas hídricas eram grandes pecuaristas e produtores rurais, em detrimento da população diretamente afetada pelos impactos da seca.

Esses exemplos históricos trazem aspectos importantes para uma melhor compreensão da universalização do acesso à água nos dias atuais. Alinhados ao tema do Dia Mundial da Água deste ano, um dos destaques é que a história construída hoje no Semiárido brasileiro “não deixe ninguém para trás”. Assim, as políticas hídricas devem priorizar os segmentos sociais mais pobres, vulneráveis a condições ambientais muitas vezes adversas, marginalizados do acesso a conhecimentos e tecnologias.

Políticas hídricas nas áreas mais vulneráveis

O problema do acesso à água abrange tanto a zona rural quanto a urbana. Nas cidades, existe a falta de acesso a saneamento básico, geralmente afetando a população com menor poder aquisitivo, que vive em áreas de risco, sem acesso à água tratada e a esgotamento sanitário. Por consequência, são atingidas com maior frequência por vetores de doenças associadas.

Já na zona rural, existem famílias que ainda não têm acesso a tecnologias sociais hídricas para mitigar os impactos da seca. Por isso, é preciso garantir esse acesso mínimo, universalizando a política pública de tecnologias sociais hídricas, embora essa ação ainda não seja suficiente para resolver o problema.

No Livro “Um século de secas”, destaca-se a necessidade de políticas que universalizem o acesso às tecnologias sociais hídricas (cisterna calçadão, cisterna-enxurrada, tanque de pedra, bomba d’água popular, barragem subterrânea e barraginhas).

As tecnologias sociais são pequenos reservatórios que armazenam água durante o período de chuvas para ser utilizada durante os meses de seca. É necessário que, nas áreas rurais, todos tenham acesso e que seja ampliada a capacidade dessas tecnologias. Já na área urbana, políticas de saneamento básico são fundamentais, além do aproveitamento de água da chuva para desobstruir os sistemas de saneamento, implantação de sistemas de dessalinização e tratamento de água residuárias.

>> Leia mais: A luta pelo básico - o drama do saneamento no Brasil

O Livro “Um século de secas” destaca que o foco para o acesso à água nas áreas mais vulneráveis à seca no Semiárido brasileiro deve ser planejamento e gestão, pois se trata de um fenômeno natural sempre presente. Por isso, a população deve estar preparada e contar com uma infraestrutura segura para atravessar o período seco, da forma menos danosa possível.

"Por falta dessa infraestrutura e desse preparo da população, a seca costuma se transformar em um desastre natural, amplo e silencioso, que provoca enormes danos e prejuízos a pessoas, economia e ambiente”, ressalta o meteorologista Humberto Barbosa, um dos autores do Livro. 

Água para todos na Agenda 2030

O Relatório das Nações Unidas lançado esta semana, intitulado “Não deixar ninguém para trás”, destaca o mapa mundial da exclusão no abastecimento de água potável e investiga formas de superar as desigualdades para garantir o acesso seguro a todos. Vale lembrar que esse é o sexto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030, que visa garantir a gestão sustentável, o acesso à água e ao saneamento, para todos, até 2030.

Por se tratar de um direito humano universal, conforme reconhecido pela ONU, em 2010, os países devem agir rumo à obtenção do acesso à água e ao saneamento para todos, sem discriminação, ao mesmo tempo priorizando as pessoas mais necessitadas.

Em geral, a pobreza é um fator de destaque para limitar o acesso à água. As populações pobres e marginalizadas são afetadas de forma desproporcional, aumentando ainda mais as desigualdades crescentes. Por isso, a exclusão e as desigualdades devem ser tratadas com políticas específicas visando reduzir situações de injustiça ambiental.

A discriminação ocorre quando grupos sociais são excluídos, direta ou indiretamente, de leis, políticas ou práticas da prestação de serviços ou do tratamento igualitário. Garantir que a água esteja física e financeiramente acessível a todos requer recomendações políticas adequadas para grupos-alvo específicos.

O Relatório “Não deixar ninguém para trás” também destaca que aqueles marginalizados ou discriminados por causa de seu gênero, idade, condição socioeconômica, por sua identidade étnica, religiosa ou linguística, também têm maior probabilidade de ter um acesso limitado à água e saneamento adequados.

Para que governos garantam o acesso universal à água, até 2030, são necessárias políticas inclusivas para se alcançar esse objetivo. Elas também são necessárias para neutralizar conflitos entre diferentes usuários da água. De acordo com o Relatório da ONU, desde a década de 1980, o uso da água tem aumentado em todo o mundo, contribuindo para um crescimento significativo dos conflitos relacionados ao acesso a esse recurso natural.

A demanda mundial por água deve continuar aumentando a uma taxa semelhante até 2050, o que representará um crescimento de 20% a 30% em relação ao nível atual de uso, principalmente devido a uma maior demanda nos setores industrial e doméstico.

O documento também demonstra que investir em serviços de fornecimento de água e saneamento propicia um alto retorno social e econômico, quando comparados aos seus custos. As vantagens incluem o caso específico das pessoas socialmente vulneráveis e com menor poder aquisitivo, especialmente quando são considerados benefícios mais amplos, como saúde e produtividade.

A legislação internacional de direitos humanos induz os países a trabalharem para alcançar o acesso universal à água e ao saneamento para todos, sem discriminação, priorizando ao mesmo tempo as pessoas mais necessitadas e em condição de vulnerabilidade.

Conclusão

As melhorias na gestão dos recursos hídricos, bem como o acesso a serviços de abastecimento de água e saneamento são essenciais para abordar várias desigualdades sociais e econômicas. Desse modo, que “ninguém seja deixado para trás” quando se tratar de aproveitar os múltiplos benefícios e as oportunidades que a água oferece.

Na história do Semiárido brasileiro, região mais vulnerável do Brasil, em termos de acesso equitativo e seguro à água potável, diversos grupos sociais foram excluídos e discriminados. No entanto, para cumprir o compromisso da Agenda 2030 de garantir água para todos, é necessário considerar essas lições do passado e adotar medidas efetivas para reduzir a exclusão.

Essas ações começam pela universalização de tecnologias adaptadas para armazenamento desse recurso natural, bem como pelo desenvolvimento de novas soluções científicas inovadoras e pelo planejamento governamental para uma melhor convivência com as secas nessas áreas vulneráveis.

Na sua opinião, quem está sendo deixado para trás nas políticas públicas de água? O que pode ser feito para que as políticas incluem grupos sociais vulneráveis para o acesso universal à água?

COMO CITAR ESTE ARTIGO:

LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].

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