No Semiárido brasileiro, há mais de um século, iniciaram-se as políticas públicas para amenizar os efeitos da seca. Com essa finalidade, desde então, criaram-se instituições, realizaram-se pesquisas científicas e definiram-se diferentes soluções, a fim de ajudar a população a atravessar o longo período de escassez. Diversos programas ou ações governamentais também foram implementados, visando resolver a questão hídrica na região.
Apesar dos muitos investimentos na região, por meio de políticas para mitigar os efeitos da seca, pergunta-se: por que, em pleno século XXI, o fenômeno climático continua tomando proporções de desastre natural? Os resultados dessas medidas estatais não contribuíram para tornar a população mais resiliente à seca? As políticas foram insuficientes para provocar transformação social no Semiárido brasileiro?
Neste post, buscaremos explicações históricas para compreender porque a população do Semiárido brasileiro continua vulnerável à seca. Iremos analisar as mudanças na realidade da população do Semiárido, desde a seca de 1915 até a mais recente, ocorrida em 2015, correspondendo a um século de secas e de políticas para atenuar os seus impactos na região.
Em 1930, Rachel de Queiroz estreou na literatura brasileira com o romance “O Quinze”. Uma contundente crítica social, a obra abordou a severa seca ocorrida no Semiárido, mais precisamente no município de Quixadá (CE), em 1915.
A narrativa apresentou as consequências devastadoras provocadas pelo silencioso desastre natural na vida de pequenos produtores rurais do Semiárido brasileiro, a exemplo da migração, fome, sede, falta de trabalho e até a morte. Também relatou o drama das personagens nos tenebrosos campos de concentração, espaços construídos pelo governo, nos arredores da capital Fortaleza (CE), com intenção de alojar “retirantes” ou “flagelados” fugitivos da seca, impedindo que “perturbassem a ordem” nos espaços urbanos.
A seca de 1915 ocorreu pouco depois da criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), em 1909, quando o evento climático passou a ser tratado como uma questão de Estado, institucionalizando políticas governamentais destinadas a minimizar os seus impactos na região que logo ficaria conhecida como "Polígono das Secas", uma delimitação preliminar do atual Semiárido.
Com a IOCS, buscou-se conhecer cientificamente a região e investiu-se na “política hidráulica”, baseada na construção de grandes reservatórios destinados ao armazenamento de água.
Embora um passo importante na consolidação de uma infraestrutura hídrica básica ainda inexistente na região, a construção dessas represas não beneficiou a população vulnerável necessitada de acessar políticas públicas durante a seca. Grupos de poder econômico, como grandes latifundiários e fazendeiros influentes no cenário político regional, durante décadas, foram seus maiores beneficiários.
Concentravam-se terra, água e poder na região, enquanto a maioria das pessoas continuava necessitando de socorros públicos a fim de resistir aos impactos da seca. Nos momentos de crise, a ênfase do governo recaía sobre políticas emergenciais, sendo a maioria delas tardias, centralizadas, sem planejamento e participação social, insuficientes, portanto, à resolução do problema.
Desde 1915, o Semiárido brasileiro enfrentou diversas secas, consideradas de impacto severo ou extremo (1919, 1932, 1942, 1980, 1983, 1990, 1993, 1998, 2012 e 2016). Há muito, a ocorrência do fenômeno é previsível pela ciência. Porém, em pleno alvorecer do século XXI, a população do Semiárido, especialmente agricultores familiares dependentes das chuvas para manter seus sistemas de subsistência, ainda esperavam ajuda pública no sentido de atravessar o longo período de escassez.
A paisagem de morte e desolação, entretanto, representada no romance de Rachel de Queiroz, já não caracteriza a sociedade do Semiárido nos atuais períodos secos. Nos tempos de “O Quinze”, pela falta de preparo mínimo da população para conviver com o evento climático, perdia-se a dignidade humana e, em muitos casos, a vida de homens, mulheres, crianças e animais, grassados pela fome, sede e epidemias decorrentes do desastre natural.
E nos dias de hoje, você sabe quais avanços houve em termos de políticas contra os impactos da seca no Semiárido?
Nas últimas décadas, políticas sociais de distribuição de renda, embora insuficientes para provocar mudanças estruturais no Semiárido, têm contribuído no sentido de mitigar os efeitos da seca.
Além disso, iniciativas governamentais, fundamentadas na implantação de tecnologias sociais adequadas ao abastecimento de água no Semiárido, têm provocado impactos positivos na agricultura familiar, contribuindo com a segurança hídrica e alimentar da população.
Os impactos positivos das tecnologias sociais destinadas ao armazenamento de água no Semiárido brasileiro, bem como a assegurar a produção de alimentos pelos agricultores familiares, foram abordados com mais detalhes no livro Um século de secas: por que as políticas hídricas não transformaram o Semiárido basileiro?.
Dentre as tecnologias sociais hídricas utilizadas nas áreas rurais da região, estão: cisterna-calçadão, cisterna-enxurrada, barragem subterrânea, barreiro-trincheira, barraginha, tanque de pedra e bomba d'água popular.
Hoje, agricultores familiares do Semiárido estão mais resilientes à seca. A participação da sociedade civil na gestão de políticas públicas, com destaque ao papel desempenhado pela rede de organizações Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), tem contribuído em oferecer capacitação aos pequenos produtores rurais, assegurando maior autonomia diante dos eventos climáticos extremos.
Políticas públicas governamentais, com apoio dessas organizações civis, a exemplo do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) têm propiciado impactos positivos à agricultura familiar. No entanto, essas ações ainda são insuficientes para atender às demandas da maior parte da população rural.
A agricultura e a pecuária, bases de sustentação da agricultura familiar do Semiárido, são drasticamente afetadas pela seca. As lavouras e os animais têm sido vítimas fáceis da severa escassez de água e alimentos durante esses eventos climáticos extremos.
No período de um século (1915-2015), consolidaram-se importantes pesquisas científicas a respeito da seca no Semiárido brasileiro, capazes de subsidiar a tomada de decisão sobre políticas públicas.
Além disso, os sistemas de monitoramento e alerta precoce sobre secas estão cada dia mais seguros e precisos. Tecnologias de sensoriamento remoto têm permitido o estudo, em larga escala, dos impactos das secas sobre a vegetação, os solos e a agricultura familiar. Esses mecanismos tecnológicos propiciam, por exemplo, a avaliação dos atuais impactos da seca no Semiárido.
A sequência de imagens de satélite apresentadas abaixo resulta do trabalho de monitoramento, com alta precisão, do comportamento espaço-temporal da seca no Semiárido, no período de 2011-2016. A grande extensão e intensidade do evento climático foi mapeada pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélite (Lapis), por intermédio da avaliação do impacto da seca na caatinga.
Conforme observado nos mapas acima, as áreas em vermelho apresentam a reação da vegetação ao déficit de chuvas, no período de março de 2011-2016, sinalizando para situações de secas extremas. Já as áreas em verde mostram a recuperação da caatinga aos primeiros sinais de chuvas e umidade dos solos.
Um século depois de “O Quinze”, foi vivenciada a pior seca já registrada pela ciência no Semiárido (2010-2016), desde quando iniciaram-se as medições. Todavia, a severidade do problema, mais uma vez, foi amplamente ignorada pelos governos, pois não se assistiu, durante o período, a nenhum tipo de mobilização política efetiva em prol de ações para diminuir os impactos do fenômeno climático sobre a população.
No Brasil, dispõe-se de uma legislação bastante avançada relacionada à gestão das águas, a exemplo da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei no 9.433/97). Essa legislação trouxe subsídios específicos com finalidade de contribuir em minimizar os problemas hídricos do Semiárido.
No entanto, em relação à gestão hídrica, de uma maneira geral, limitações institucionais, infraestruturais, técnicas, financeiras e de pessoal ainda levam agências governamentais a atuarem apenas no plano emergencial e na resolução de impactos negativos imediatos. Isso ocorre também na maioria dos municípios do Semiárido.
A construção de um modelo de gestão integrada, descentralizada e participativa dos recursos hídricos se constitui como um dos caminhos a fomentar políticas públicas adequadas à convivência sustentável com o Semiárido. Todavia, esse processo requer planejamento e participação social no processo de elaboração e implementação de políticas.
A falta de planejamento na gestão das águas tem sido a principal causa a impedir o desenvolvimento sustentável do Semiárido.
Instituições públicas, a exemplo das universidades e da Agência Nacional de Águas (ANA), têm o potencial de contribuir, respectivamente, com pesquisas científicas alternativas para o suprimento de água no Semiárido e ações gerenciais com o intuito de fortalecer os sistemas de gerenciamento.
As universidades também têm exercido um papel importante na formação de recursos humanos na região. No entanto, necessitam de incentivos para a sistematização de dados, informações, mecanismos e ferramentas auxiliares à gestão das secas, capazes de atender, de forma ampla e abrangente, as demandas por políticas públicas efetivas na região.
Destaca-se ainda o importante papel da sociedade civil organizada na formulação e execução de políticas adaptadas à realidade do Semiárido brasileiro.
O desastre natural da seca ainda coloca grande parte dos municípios do Semiárido em Situação de Emergência, em decorrência da falência na manutenção das atividades agropastoris em pequena escala, base da economia regional.
Eventos climáticos extremos, ao produzirem danos e impactos socioeconômicos generalizados, desdobram-se em condições características de desastres naturais. Esses fenômenos expõem a vulnerabilidade da população humana frente aos sistemas naturais, alterando o funcionamento da economia e o bem-estar social.
No ano de 2012, o Semiárido passou por um dos piores eventos climáticos da sua história. Os impactos negativos generalizados da seca acarretaram graves prejuízos humanos, sociais, econômicos e ambientais na região.
Naquele ano, mais de 5 milhões de pessoas foram afetadas diretamente pela seca. Praticamente todos os municípios da região decretaram Situação de Emergência em razão dos efeitos do fenômeno, alguns deles reconhecidos mais de uma vez nessa condição.
Os impactos da intensa seca, prolongada até 2016, afetaram diretamente a economia nacional, especialmente a população das metrópoles, quando houve grande redução na oferta de produtos e aumento nos preços dos alimentos.
No período de 1995-2014, os prejuízos privados provocados por desastres naturais na economia do Nordeste foram estimados em R$ 43 trilhões. Esse valor corresponde a cerca de 37% do total nacional nessa categoria e abrange os setores da agricultura, pecuária, indústria e serviços. Os dados são do Relatório de Danos Materiais e Prejuízos Decorrentes de Desastres Naturais no Brasil.
Já o total de prejuízos públicos foi mensurado em torno de R$ 9 trilhões, percentual alarmante para a região, representando, aproximadamente, 48% do valor estimado em todo o País. Essa situação poderá se agravar se confirmadas as projeções de alterações climáticas até o fim do século.
No Brasil, cerca de 48% dos danos e prejuízos causados por desastres naturais de origem climatológica se concentram no Nordeste. Desse total, a maior parte, correspondente a 75%, está diretamente relacionada às estiagens e secas que frequentemente afetam a região.
Necessita-se de vontade política destinada a diminuir a vulnerabilidade da população do Semiárido brasileiro frente a esses eventos climáticos extremos.
Isso requer o planejamento integrado de ações fortalecedoras da agricultura familiar, tornem tecnologias e conhecimentos técnicos acessíveis com a finalidade de os produtores rurais se prepararem para os períodos de seca. Também é imprescindível que disponham de recursos produtivos como água, terra e crédito, a fim de garantirem a continuidade da produção.
Essas estratégias são fundamentais em promover a adaptação dos agricultores familiares à seca e às mudanças climáticas, previstas para futuro breve. De acordo com recentes projeções, o Semiárido será uma das regiões mais afetadas por essas alterações ambientais, tendo redução de até 40% nas suas chuvas.
A seca continua tomando proporções de um desastre natural no Semiárido brasileiro, em função de a maioria das políticas voltadas a diminuir os seus impactos ainda não estarem devidamente alinhadas às reais necessidades da população.
Como ocorreu historicamente, as iniciativas governamentais continuam sendo elaboradas com o intuito de beneficiar pequenos grupos de poder político e econômico da região, em detrimento da maior parte da população.
Os recentes modelos de gestão de políticas públicas, baseados na participação social, têm contribuído no sentido de ampliar a resiliência da população socialmente vulnerável à seca no Semiárido. Essa pode ser a solução capaz de melhorar a efetividade das medidas estatais adotadas na região.
Para aprofundar seus conhecimentos sobre o assunto deste post, recomendamos a leitura do livro Um século de secas: por que as políticas hídricas não transformaram o Semiárido brasileiro?, no qual os autores abordam um panorama histórico das principais políticas implementadas na região, no período de 1901-2016.
LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].
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