Brasil compra satélite para monitorar Amazônia: entenda em 5 pontos


Técnicos da empresa Iceye, da Finlândia, testando um satélite-radar. Foto: Iceye/Divulgação.


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O Ministério da Defesa adquiriu, no último dia 30 de dezembro de 2020, o direito de acesso a uma constelação de satélites, do tipo Radar de Abertura Sintética (SAR), da banda X, com a finalidade de monitorar o desmatamento da Amazônia.

A aquisição, cujos benefícios poderiam ser avaliados tecnicamente pela comunidade científica, não demorou para se tornar uma polêmica. A questão é que a compra foi feita sem licitação, a uma empresa finlandesa, por cerca de R$ 175 milhões, e o contrato está sob sigilo por 5 anos.

O fato contraria os princípios de transparência nas compras públicas, em nome de uma falaciosa justificativa de informações de “segurança nacional”.

Além disso, acrescenta-se o fato de o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) ter se posicionado contra a compra do direito de acesso aos satélites-radar. Os pesquisadores daquela instituição alegaram, em documento enviado ao governo, que os equipamentos não oferecem a acurácia desejada, para o monitoramento da Amazônia, por não permitir distinguir a floresta de uma área recém-desmatada.

O Inpe é o órgão nacional responsável pelo monitoramento do desmatamento na Amazônia, competência consolidada durante o período de 30 anos.

Para além da politização de um tema tão relevante, neste post, vamos esclarecer a real capacidade que o acesso a essa constelação de satélites-radar terá, para o monitoramento do desmatamento da Amazônia. Vale lembrar que o assunto perpassa várias outras questões, relacionadas ao desenvolvimento e à soberania do Brasil.

Para isso, conversamos com o pesquisador Humberto Barbosa, fundador e gestor do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis). Recentemente, ele teve a experiência de utilizar imagens de radar-SAR, do satélite Sentinel-1A, para detectar manchas de óleo derramado no litoral do Nordeste, após o desastre ocorrido em 2019.

Na ocasião, o Laboratório também desenvolveu metodologias específicas, para processamento e interpretação das imagens do satélite-SAR, tendo lidado diretamente com suas vantagens e limitações.

Confira, a seguir, 5 perguntas e respostas que esclarecem os benefícios e desafios, relacionados à compra do acesso ao satélite-radar de banda X, pelo governo brasileiro.

1) O acesso do Brasil à banda X vai melhorar o monitoramento da Amazônia?

De acordo com Humberto Barbosa, do Lapis, embora ainda existam limitações, é possível melhorar o monitoramento do desmatamento, com satélite-radar de banda X. 

A tecnologia de banda L, de fato, é a mais sofisticada, pois penetra mais no dossel da floresta, envolvendo caules e folhas. Assim, é claro que a banda L seria a tecnologia ideal, para se monitorar a Amazônia. Porém, ainda é uma tecnologia muito cara. Por essa razão, se considerarmos o custo-benefício, a banda X é hoje a melhor opção para o Brasil.

A banda X também tem capacidade de penetrar no dossel da vegetação, embora fique limitada somente ao topo das árvores. Mas é possível fazer o monitoramento da floresta, com a banda X, pela qual serão obtidas muitas informações valiosas, que o Brasil ainda não tem acesso.

Observe, na ilustração abaixo, o nível de cobertura da densidade floresta, permitida pelo satélite-radar de banda X. 

Vale lembrar que, além do monitoramento da Amazônia, o acesso a essa constelação de satélites-radar, adquirido de uma empresa da Finlândia, também contribui para o monitoramento de vários outros setores.

É o caso da agricultura, desastres naturais, tráfego de navios, topografia, segurança de fronteiras, mineração, interferometria dos solos, bacias hidrográficas, desastre de barragens, óleo e gás, entre outros setores que podem ser beneficiados.

Nessa frequência temporal, o acesso a esse tipo de satélite-radar, em muito teria ajudado no monitoramento da origem do óleo derramado, no Litoral do Nordeste. Para se evitar novos incidentes, por derramamento de óleo, bem como para monitoramento contínuo das fronteiras, é importante obter informações de radar-SAR, pois independem das condições de tempo e do horário.

Desde os anos 1960, foram desenvolvidos satélites capazes de fornecer dados da superfície terrestre, em alta resolução. Porém, como operavam nos comprimentos de onda do visível e infravermelho, as imagens obtidas dependiam da quantidade de luz solar disponível e da cobertura de nuvens.

Os satélites-radar superaram essa limitação, em função de usarem micro-ondas, zona em que o espectro eletromagnético é transparente, à passagem da radiação, ou seja, a transmissividade atmosférica é quase 100%.

Uma das maiores vantagens da tecnologia-SAR é que a cobertura de nuvens não impede que informações da superfície sejam obtidas, nas frequências das micro-ondas. Além disso, o uso dessa zona do espectro possibilita recolher dados da superfície, independentemente da luz solar disponível. 

De maneira geral, o acesso a essas imagens será importante para o Brasil, embora não seja a solução definitiva, tampouco a mais segura para a soberania nacional.

>> Leia também: A ferramenta de satélite que pode alavancar a produção agrícola

2) As imagens dos satélites-radar poderiam ser acessadas gratuitamente?

Um dos posicionamentos do Inpe, sobre a compra do direito de acesso, aos satélites-radar, pelo governo brasileiro, é que essas imagens já são acessadas gratuitamente pelos seus pesquisadores.

Todavia, a disponibilização dessas "amostras grátis" de imagens de satélites-radar tem muitas limitações. Desse modo, estão longe de serem suficientes para uso operacional, em sistemas de vigilância de problemas de grande interesse nacional, como o desmatamento na Amazônia.

O acesso a imagens de microssatélites-radar, de alta resolução (3 x 3 metros) e alta frequência temporal, para atender demandas de governo ou de grandes empresas, de fato deve ser adquirido, pois infelizmente o Brasil não dispõe desse tipo de tecnologia própria.

Os satélites-SAR resultam de muito investimento de capital privado, com alta tecnologia agregada, para exploração do espaço, diferentemente de como fazem as empresas convencionais, do setor aeroespacial.

Portanto, pela própria característica de empresa privada, apenas uma pequena parte dessas imagens pode ser obtida gratuitamente, sendo um acesso limitado, não suficiente para monitoramento operacional.

Existem agências governamentais, como a missão Copernicus, da Agência Espacial Europeia (ESA), que permitem acesso ao satélite-radar Sentinel-1, mediante um cadastro, mas é sempre um acesso limitado.

>> Leia também: Os 3 motivos por que os satélites fazem parte de uma nova corrida espacial

3) Quais as limitações e vantagens dos microssatélites-radar?

Uma das limitações dessa tecnologia-SAR, apesar dos muitos avanços, é que não permite um monitoramento de alta frequência temporal (o retorno da passagem do satélite, em cada faixa, ocorre somente a cada 17 dias).

Por outro lado, uma vantagem é que esses microssatélites comerciais acoplaram um total de 15 órbitas, possibilitando que, a cada passagem, sejam disponibilizadas imagens da cobertura de diferentes faixas (regiões).

Por exemplo, quando o Laboratório Lapis realizou o monitoramento do derramamento de óleo no Litoral do Nordeste, conseguiu identificar duas grandes manchas do resíduo no oceano, próximo ao litoral da Paraíba e do Rio Grande do Norte.

Desse modo, mesmo com essa limitação do intervalo de dias, para retorno do Sentinel-1A, à mesma faixa, foram identificadas imagens valiosas, para a investigação do incidente. É claro que, em razão dessa descontinuidade, houve necessidade de complementação dos dados, com informações de outros tipos de sensores.

A imagem abaixo mostra uma das manchas encontradas pelo Lapis, durante o monitoramento da origem do desastre por derramamento de óleo, no Litoral do Nordeste. A imagem é do satélite-radar Sentinel-1A e a mancha foi identificada no litoral norte, do Rio Grande do Norte. Na época, a imagem foi considerada uma evidência importante, para as investigações da origem do incidente. 

Mancha de óleo no Litoral do Nordeste, na imagem do satélite Sentinel-1A

Mancha de óleo no Litoral do Nordeste, na imagem do satélite Sentinel-1A.

Desse modo, embora essa tecnologia ainda tenha limitações, é uma ferramenta com enorme potencial, que vai complementar outros dados, de diferentes sensores. Para o monitoramento contínuo, operacional e diário, por parte de governos e empresas, existem outros satélites, que podem adicionar mais informações aos microssatélites-SAR.

É o caso do próprio Sentinel-1, com dados publicamente disponíveis, além de outros sensores ópticos, que dependem de iluminação, para registrar o objeto investigado. Dessa forma, a lacuna da baixa frequência temporal dos satélites-radar pode ser parcialmente minimizada. 

A imagem abaixo mostra como o satélite Sentinel-1A, que utiliza banda C, consegue adentrar no dossel da floresta, a uma profundidade de 5 centímetros, enquanto o satélite de banda X penetra cerca de 3 centímetros. 

Mas não se pode prescindir da grande vantagem da tecnologia-SAR, que é não ter influência de cobertura de nuvens ou de luz solar disponível. Em caso de um incêndio florestal na Amazônia, por exemplo, o satélite-radar de banda X, consegue penetrar, permitindo o mapeamento da superfície, mesmo sob nuvens de fumaça.

Para detectar um ponto específico, com mais detalhamento, esses microssatélites oferecem essa capacidade. A limitação é que para voltar para a mesma faixa ou região, costuma levar vários dias, como já foi explicado.

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4) O que está em jogo, por trás da polêmica compra dos microssatélites?

O recente contrato de compra do direito de acesso às imagens dos microssatélites-radar, pelo Comando da Aeronáutica, está sob sigilo. Esse fato impede que a comunidade científica conheça o que está incluso no pacote. É bom lembrar que a aquisição do acesso à constelação de satélites custou muito aos cofres públicos e, como vimos, esses dados deverão ter diferentes aplicações, em várias questões de interesse público.

Além das áreas de aplicações já citadas, as imagens podem ser úteis aos órgãos de Defesa, Polícia Federal, universidades, órgãos estaduais e ao próprio Inpe.

O Brasil comprou a capacidade operacional do satélite-radar, mas ainda não se sabe que softwares e condições de infraestrutura estão inclusos no contrato. Que condições operacionais o Brasil deverá dispor e que tecnologia agregada irá receber, para explorar devidamente essa tecnologia? Que competências o Brasil ainda precisa desenvolver?

Vale lembrar que os dados dessa constelação de microssatélites-radar são muito mais complexos para se processar, do que os oriundos de satélites ópticos.

É fato que essas empresas que operam microssatélites-radar agregam toda uma infraestrutura de processamento, com alta tecnologia, mas ainda não se sabe se o Brasil vai adquirir tudo isso junto. 

Também são imagens muito pesadas, que exigem uma robusta capacidade de armazenamento. Adquirindo os serviços desse satélite, ideal é que todo esse arsenal esteja incluso.

As empresas que exploram comercialmente esses satélites agregam toda uma infraestrutura de processamento, com alta tecnologia. Porém, tudo isso deveria está incluso, no contrato de compra. 

Os dados-SAR têm muitos ruídos, sendo necessária muita capacidade de pré-processamento de imagens, para eliminar esses ruídos, aplicando técnicas de Inteligência Artificial. Alguns países já estão bastante avançados nisso.

Portanto, em razão da falta de transparência, no processo de compra, não sabemos se o pacote que o Brasil adquiriu já inclui receber essa capacidade da empresa. A forma mais efetiva para isso seria mediante treinamentos, para que equipes operacionais se apropriem da tecnologia-SAR adquirida. 

Com relação à compra isolada de imagens desses satélites, também não seria suficiente, pois impossibilita a aplicação operacional. Essa aquisição geralmente ocorre mais para finalidades técnico-científicas ou para problemas pontuais.

Quando se compra o serviço do satélite, há todo o acesso à recepção desses dados, bem como de processamento, o que requer infraestrutura e pessoal qualificado, no processamento e interpretação. E é importante que o Brasil atente para isso, por enfrentar complexos desafios ambientais, bem como na área de agricultura e mudança climática

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5) Quais as implicações da aquisição desse satélite para a soberania nacional?

Não há como se falar em soberania, quando o Brasil ainda depende de tecnologia estrangeira, para obter informações espaciais estratégicas e de segurança nacional. O País comprou o direito de uso dos satélites-radar, justamente por não dispor da capacidade de operar com sua própria tecnologia. 

Com isso, o fato é que a tecnologia continuará a ser controlada pela empresa privada que a desenvolveu. Assim como ocorre, ainda hoje, que dependemos de satélites europeus e norte-americanos, para monitoramento de informações meteorológicas.

Vale lembrar um fato histórico, ocorrido em 1982, durante a guerra das Malvinas. O conflito, deflagrado pela Argentina e o Reino Unido, teve como estopim a luta pela posse de um conjunto de ilhas.

Na ocasião, os Estados Unidos, alinhados do Reino Unido, deslocaram a posição de seu satélite geoestacionário, para que a Argentina não obtivesse informações estratégicas. Desse ponto de vista, pode-se dizer que hoje a Amazônia brasileira é muito mais monitorada por potências estrangeiras, do que pelo Brasil.

Essa situação de dependência do Brasil acontece porque não houve estratégia da indústria brasileira, ficando dependente de tecnologias de empresas estrangeiras. Não se investiu, no médio e longo prazo, em educação, ciência e tecnologia.

Para se ter uma ideia, a empresa da Finlândia, que vendeu agora os satélites-radar ao Brasil, foi fundada por estudantes, em formato de Startup. Essa origem demonstra o retorno que o investimento em educação e ciência tem trazido para economias de países mais avançados.

No Brasil, a agricultura é um nicho que tem sustentado a economia, mesmo em momentos de profunda crise. Porém, diferentemente do que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na área de Pesquisa e Desenvolvimento, a tecnologia aeroespacial não agregou valor às atividades rurais.

Isso é prejudicial, pois o Brasil tende a crescer, cada vez mais, em produção de commodities agrícolas. Com um planejamento paralelo, teria havido mais segurança não apenas para a agricultura, mas também para setores como óleo, gás e mineração.

As próprias empresas poderiam ter contribuído com investimentos, para o desenvolvimento dessas tecnologias. É o caso da Base de Alcântara, que não foi devidamente explorada, para o lançamento de microssatélites. Já poderíamos estar aproveitando esse potencial, em parceria com empresas do setor espacial.

A Argentina, depois da histórica lição da guerra das Malvinas, desenvolveu sua industria espacial e hoje conta com seu próprio satélite-radar, de banda L, chamado SAOCOM-1. Desde os anos 1970, aquele país investiu e conseguiu acessar uma importante tecnologia própria, para a qual o Brasil ainda não avançou.

O satélite CBERS foi o cenário em que o Brasil teve a mais bem-sucedida participação, no cenário aeroespacial, em parceria com a China. Dessa experiência, o Inpe, onde parte da missão foi desenvolvida, atraiu empresas, para desenvolver sensores. Isso permitiu a melhoria da nossa capacidade de fazer testes em câmeras de vibração e ruídos, para auxiliar indústrias e empresas privadas.

Mas desde os anos 1990, não há um desenvolvimento da indústria espacial brasileira. Apesar dos vários desafios na área ambiental, de agricultura e desenvolvimento, nosso setor espacial estagnou, junto com a economia, desde aquele período.

Com a mudança climática e nesse cenário de pouco investimento em educação e pesquisa, cada vez mais vamos precisar de tecnologias aeroespaciais estrangeiras.

O Brasil desenvolveu, em parceria com a França, o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicação Estratégica (SGDC), que muito custou para o País. Porém, ficou restrito apenas aos setores militar e de telecomunicações, que hoje sequer beneficia a conectividade das áreas rurais do Nordeste e da Amazônia.

Foi mais um erro estratégico, pois o satélite SGDC não tem a capacidade de monitoramento meteorológico. E hoje, depender de uma empresa de outro país, para obter informações de monitoramento, é uma ameaça à nossa soberania, pois outros países têm acesso, principalmente empresas privadas, às nossas informações estratégicas e de segurança nacional.

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Conclusão

De maneira geral, como a vida útil desses microssatélites-radar, cujo acesso acaba de ser comprado pelo Brasil, é de 4 a 5 anos. Considerando os benefícios potenciais dessa aquisição, para várias áreas do País, pode ser um investimento de significativo retorno.

A compra do acesso a esses satélites-radar tem a vantagem de atender várias instituições, embora o ideal fosse que utilizássemos um satélite, com tecnologia e controle próprio. Embora reforce nossa relação de dependência tecnológica e não seja a solução mais segura, do ponto de vista estratégico, não ter essa tecnologia seria muito pior.

Ou seja, depois dessa aquisição, não estaremos nas melhores condições, mas os satélites-radar irão aumentar nossa capacidade de monitoramento. Eles também podem criar oportunidades para outros setores, especialmente, para a área de monitoramento ambiental e de desastres, que se tornará crucial, nos próximos anos.  

*Post atualizado em: 04.01.2020, às 10h47.

COMO CITAR ESTE ARTIGO:

LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].

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