Dona Severina mora em um pequeno povoado do município de Exu, no Alto Sertão de Pernambuco, bem na divisa com o estado do Ceará. Uma mulher de 61 anos, mãe de 6 filhos, guarda consigo marcas de muita luta e resistência à seca.
Seus filhos ainda eram crianças quando ela viveu o drama da severa seca de 1979-1983. Vivia em um dos maiores bolsões da seca e da pobreza no País. Na época, mulheres e crianças eram as maiores vítimas do desastre natural no Nordeste brasileiro. Ali, dona Severina e seus filhos, assim como muitas mulheres e crianças da região, enfrentaram fome, sede, doenças e desnutrição, causadas pela infraestrutura inadequada para conviver com a seca.
Dona Severina foi uma típica “viúva da seca”, metáfora dada, a contragosto, às mulheres do Nordeste brasileiro, que permaneciam em sua terra, enquanto seus maridos migravam para outras regiões, em busca de emprego para garantir o sustento da família. Em 1980, quando a grande seca atingiu o pico na região, o esposo de dona Severina, seu João, partiu em busca de trabalho para garantir o sustento da família. Migrou para o interior do Estado de São Paulo, onde servia como mão de obra barata, enquanto sua esposa se tornou, a duras penas, a gestora responsável pela família.
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Ao lembrar da situação, dona Severina conta: “Aquele foi um dos anos mais difíceis da minha vida. A seca de 80 foi uma tragédia para nossas famílias”. Na ausência do esposo, a agricultora viu-se no encargo de cuidar das crianças e trabalhar para garantir o sustento da família. Contava apenas com a ajuda do seu filho mais velho, de treze anos. Ela era alistada no serviço de um Programa de Emergência do governo federal e trabalhava na construção de açudes para armazenar água quando as chuvas viessem.
O Estado brasileiro empregava pessoas em obras públicas para não morrerem de fome e inanição. Dona Severina saía todas as manhãs, ainda escuro, com seu carrinho de mão, para ajudar na construção da obra. O salário recebido do governo era insuficiente para alimentar a família. No Nordeste, geralmente as famílias eram formadas por muitos filhos, não existia um programa de planejamento familiar na região. A taxa de mortalidade infantil era muito alta, cerca de 3 em cada 10 crianças morriam antes mesmo de completar um ano de vida. Um total de 1,5 milhão de nordestinos foram alistados nas frentes de trabalho e dependiam do assistencialismo do Estado para sobreviver.
As mulheres, incluindo tantas outras “viúvas da seca”, mães, grávidas, jovens, idosas, engrossavam os filões das frentes de emergência, símbolo da incapacidade do Estado, com suas ações tardias e emergenciais para fazer frente às secas. Despreparo, corrupção e negligência. Este era o cenário de um Estado incapaz de garantir o mínimo de planejamento para implantação de políticas elementares para a segurança alimentar, hídrica e prevenção à saúde. Uma população esquecida, lembrada apenas quando a imprensa mostrava ao País a tragédia supostamente provocada pela seca. Na verdade, era pela ausência de infraestrutura para enfrentar o período de escassez.
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Pouco antes de acabar aquela triste seca, em 1983, seu João voltou ao convívio familiar. As chuvas voltaram nos anos seguintes, até o final da década, quando aquela família voltou a vivenciar momentos de estabilidade. Até parecia que a seca não era mais um problema no Nordeste brasileiro.
Mas logo as cenas voltariam a se repetir nas secas de 1990-1993, 1998, 2007, 2010-2017. Esta última, considerada a pior seca do século, com duração, intensidade e extensão considerada sem precedentes na região. A história dessas secas, bem como das principais políticas implementadas pelos governos brasileiros para minimizar os seus impactos, é abordada com profundidade no Livro “Um século de secas: por que as políticas hídricas não transformaram o Semiárido brasileiro?” (Editora Chiado, Portugal).
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Os filhos de dona Severina cresceram. Três deles, como o pai, um dia tomaram o mesmo caminho para São Paulo, em busca de trabalho. Lá construíram família e hoje dona Severina recebe boas notícias deles.
A partir de 1998, o casal de agricultores familiares conta ter visto muita coisa mudar em seu lugar e se sente mais forte para enfrentar a seca, como a recente “seca do século”, ocorrida no período de 2010-2017.
Seu João lembra: “Quando eu era jovem, vi a construção de um grande açude a 10 quilômetros aqui de casa. Mas o reservatório beneficiou muito pouco os pequenos agricultores”. Dona Severina, como tantas outras mulheres rurais do Semiárido, foi a principal responsável, durante muito tempo, pelo encargo de transportar água de fontes distantes, para garantir o abastecimento de casa.
Desde fins dos anos 1990, políticas públicas de acesso à água têm propiciado a implantação de tecnologias sociais hídricas, de baixo custo, para atender às demandas das comunidades rurais difusas do Semiárido. O foco é promover o armazenamento de água nesses pequenos reservatórios, nos períodos de chuvas, para suprir as demandas das famílias, durante as secas, para beber, cozinhar e manter a produção de frutas, hortaliças e plantas medicinais nos quintais produtivos.
As principais tecnologias sociais são: barraginha, cisterna calçadão, cisterna enxurrada, tanque de pedra, bomba d’água popular, barragem subterrânea e barreiro trincheira. Essa política pública foi implementada, após a seca de 1998, atendendo a uma demanda da sociedade civil do Semiárido brasileiro, e conta com participação dos seus representantes, desde sua concepção.
Embora com limitações, esses programas têm trazido impactos importantes na vida das famílias rurais, especialmente das mulheres, conforme analisado no Livro “Um século de secas”. Os autores mostram como, antigamente, as mulheres rurais, a exemplo de dona Severina, despendiam um total de tempo superior a 36 dias do ano somente no transporte de água de fontes distantes. Depois dos programas de acesso à água do governo federal, estima-se ter havido uma redução para 12 dias do número total de famílias que ainda despendem tempo nessa atividade.
Seu João comemora os resultados positivos e alguns avanços dessa política. “Agora com o sistema dessas cisternas, você vê, no município de Exu, por exemplo, a quantidade que já foi feita, isso significa um açude de grande porte, mas com a água dividida para todos, beneficiando o pequeno agricultor e sua família”, disse ele.
O documentário “As fulôs do Sertão: mulheres da Caatinga fazendo econegócios” apresenta o empreendedorismo feminino construindo um Semiárido viável. A produção destaca a atuação coletiva e a consciência política das mulheres ligadas ao econegócio do Semiárido brasileiro e sugere a presença de aspectos ligados a parceria e a troca de conhecimentos como elementos importantes à transformação social.
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O acesso à água traz benefícios concretos para as mulheres do Semiárido, pois elas têm seu trabalho reduzido e tempo livre para exercerem outras atividades, inclusive para empreenderem e gerarem renda, com apoio de entidades civis.
Dona Severina, juntamente com mulheres de mais quatro famílias daquele povoado, organizou-se em mutirão para a produção de alimentos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o qual prevê a aquisição de, no mínimo 30%, de gêneros da agricultura familiar para a merenda escolar dos municípios.
Essa ação mudou as condições de vida daquelas famílias, contribuindo com a melhoria da sua segurança hídrica e alimentar, propiciando geração de renda, autonomia e empoderamento às mulheres envolvidas na iniciativa. Certamente, o alcance dessa ação no município de Exu será multiplicada, pois dona Severina, considerada uma antiga “viúva da seca”, hoje mobiliza outras mulheres da região, relatando sua experiência, o potencial das mulheres para superação da crise e as oportunidades de se organizar e empreender, para ter uma vida melhor.
Os impactos de programas governamentais, como Um Milhão de Cisternas (P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2) ainda são limitados. É o que mostram os resultados de uma pesquisa publicada no Livro “Um século de secas” sobre o acesso às tecnologias sociais hídricas nas microrregiões dos Cariris.
Localizada no estado da Paraíba, a área é considerada uma das mais secas e vulneráveis do Brasil, do ponto de vista social, econômico e ambiental. Em 2016, a infraestrutura hídrica implantada nos Cariris paraibanos, baseada na implantação de tecnologias sociais hídricas dos programas P1MC e P1+2, estava distribuída conforme imagem a seguir:
O estudo analisou a quantidade de tecnologias implantadas nos Cariris paraibanos e o alcance desses programas em relação às demandas da população rural dos municípios. De forma geral, evidenciou que a infraestrutura de armazenamento de água implantada nas áreas mais secas do Brasil ainda está muito aquém das necessidades da população. Essa constatação se torna crítica quando analisados os dados do P1+2, relacionados a tecnologias hídricas para segurança alimentar da população vulnerável às secas.
Ampliar a escala desses programas, baseado na implantação de soluções tecnológicas para a escassez de água, é estratégia elementar a ser priorizada pelos governos, visando alcançar todas as pessoas. Considerando os resultados positivos que essas tecnologias sociais têm propiciado à população, especialmente às mulheres, é fundamental universalizar a implantação dessas tecnologias sociais nas áreas rurais difusas, visando garantir o direito humano fundamental de acesso à água potável.
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Essas tecnologias sociais também precisam ser aprimoradas, em relação à quantidade de água armazenada, cujo volume ainda é insuficiente para atravessar o período seco, provocando a continuidade de antigas práticas relacionadas ao “clientelismo da água” nos pequenos municípios do Semiárido. Destaca-se também a necessidade de pesquisas relacionadas à qualidade da água armazenada e sua segurança para a saúde da população, bem como a eficiência e as condições das estruturas utilizadas nas áreas rurais para a captação da água das chuvas nos telhados.
As mulheres exercem um papel relevante nesse processo de acesso às tecnologias sociais hídricas. Ao deixarem de transportar água de longas distâncias, elas passaram a dispor de tempo e condições para a produção de base agroecológica, geralmente realizada em hortas, canteiros econômicos e quintais produtivos, nos arredores de suas casas. Também estão organizadas em cooperativas ou em associações, gerando renda e novos negócios no Semiárido do Brasil. As iniciativas ainda são pontuais, mas são sementes que podem ser multiplicadas.
Dessa forma, havendo o fortalecimento das políticas e das ações de capacitação realizadas pelas organizações civis, abre-se caminho para ampliar o protagonismo e a autonomia das mulheres do Semiárido, contribuindo para a melhoria das condições de vida das famílias. Ao mesmo tempo, valoriza-se o papel da mulher no processo produtivo e organizativo das comunidades rurais.
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Com acesso às tecnologias sociais para armazenamento de água, muitas mulheres do Semiárido também adquiriram novos papeis e responsabilidades em suas comunidades. É o caso de dona Iraci, moradora do mesmo povoado de dona Severina, em Exu. No passado, ela também passou por dificuldades bem parecidas com a da amiga, sendo também chamada de “viúva da seca”, as conhecidas viúvas de marido vivo do Nordeste brasileiro. Hoje, ela aprendeu a construir cisternas de placas, profissão tradicionalmente reservada aos homens. Também atua na mobilização de mulheres da comunidade para terem mais autonomia. Ainda é membro de uma comissão local e integra o processo de tomada de decisão sobre a gestão da água na comunidade.
Organizações locais e movimentos sociais desempenham um importante papel nesse processo de transformação social, a mobilizar mulheres rurais para criar novos espaços de inclusão social na governança da água e na convivência produtiva com a seca.
As mulheres do Semiárido não precisam mais ser chamadas de “viúvas da seca”. No passado, predominava a imagem das mulheres da seca como vítimas, abandonadas, desamparadas, sofridas pelos impactos do fenômeno. Até bem pouco tempo, as políticas para a seca ocorriam principalmente em caráter emergencial, assistencialista, enquanto beneficiavam grupos de poder da região, através da indústria da seca. Não havia uma infraestrutura ou um preparo adequado da maioria da população para lidar com a seca.
Hoje, já aparecem os primeiros sinais de mudança. É preciso que as soluções tecnológicas voltadas à estocagem de água no Semiárido se transformem em políticas efetivas e sistemáticas. Isso exige da sociedade civil ações permanentes de articulação e participação na construção das políticas no âmbito governamental e não governamental.
No passado, mulheres da seca, como dona Severina, foram resistentes, permaneceram em suas terras, lutando por dias melhores. Hoje, elas são protagonistas, autônomas, coparticipantes da construção de um Semiárido mais próspero, de novas oportunidades e melhor preparado para esperar a próxima seca.
E você, acredita que as mulheres podem transformar o Semiárido brasileiro? Na sua opinião, qual caminho as políticas podem seguir para melhorar a vida dessas mulheres?
LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].
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