A agricultura Raimunda Silva, de 42 anos, nasceu e se criou em uma comunidade rural, do município de Bom Jesus (PI). Casada com seu Avelino, ela é mãe de três filhos. A família vive em um pequeno pedaço de terra, localizado em um dos baixões férteis do Cerrado brasileiro.
Além da sua família, outros agricultores vivem ali e fazem uso tradicional das terras do bioma, há dezenas de anos. Esses moradores pareciam viver muito bem naquele lugar, até a chegada das gigantes do agronegócio tirar sua tranquilidade.
Dona Raimunda vive em Matopiba, onde avança a última fronteira agrícola do País, no coração do Cerrado brasileiro. O nome da região vem do acrônimo das iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Essa nova região econômica, ainda desconhecida da maioria dos brasileiros, abrange um gigante território, superior ao da Alemanha, compreendendo 73 milhões de hectares, distribuídos em 337 municípios.
Criada pela Lei nº 8.447, de 6 de maio de 2015, Matopiba possui cerca de 6 milhões de habitantes, segundo o Censo de 2010 (IBGE) e tem ganhado destaque mundial, pelo seu potencial na produção de grãos.
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Há cerca de 324 mil estabelecimentos agrícolas, 46 unidades de conservação, 35 terras indígenas e 781 assentamentos de reforma agrária e áreas quilombolas, num total estimado em 14 milhões de hectares de áreas legalmente atribuídas, além de áreas de conservação ainda em processo de regularização.
Desde a década de 1970, Matopiba começou a ser explorada pelo agronegócio, com a modernização da agricultura. O processo começou quando produtores da região Sul migraram para ali, atraídos pelo preço das terras.
Desde 2005, houve um fenômeno de vertiginosa expansão da atividade agrícola naquela região, a partir do surgimento de fazendas de monocultura. São utilizadas tecnologias modernas de alta precisão e produtividade, um modelo intensivo no uso de máquinas, insumos, agrotóxicos, fertilizantes e transgênicos.
As pastagens extensivas no bioma Cerrado, além de Amazônia ou Caatinga, logo seriam substituídas por uma agricultura mecanizada e áreas de irrigação.
Até os anos de 1960, acreditava-se que as últimas fronteiras agrícolas, exploradas no Brasil, eram a região Norte e Centro-Oeste. Isso até a primeira década dos anos 2000, quando Matopiba surgiu com o status de nova fronteira agrícola.
A região reúne todas as condições favoráveis ao agronegócio, para a produção em larga escala: vastas porções de terras planas, férteis, mecanizáveis e fartura de água, contrariando o estereótipo a associar, frequentemente, todo o Nordeste à seca.
Na delimitação geográfica inicial de Matopiba, utilizou-se, como principal critério, as áreas de cerrado, existentes nos estados, englobando a totalidade do Tocantins, o oeste da Bahia, o sul do Piauí e boa parte do Maranhão. Na tabela abaixo, há o percentual de municípios integrantes de Matopiba e a área territorial. ocupada por cada estado na região:
Durante o período de 2001 a 2013, enquanto a safra de grãos cresceu, em média, 3,5% no Brasil, chegou a atingir 20% ao ano, em Matopiba. Apenas quatro culturas (soja, milho, algodão e arroz) ocupavam cerca de 90%, dos mais de 4 milhões de hectares de lavoura, concentrados em dez municípios, na divisa entre os estados integrantes da região.
De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Matopiba responde hoje por aproximadamente 11% da produção nacional de grãos de soja, na safra 2017/2018.
Projeções do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) indicam que, até 2022, o Brasil plantará cerca de 70 milhões de hectares de lavouras. A expansão da agricultura continuará ocorrendo no bioma Cerrado.
Somente a região de Matopiba terá, nesse mesmo período, o total de 10 milhões de hectares, representando cerca de 16% da área plantada, devendo produzir entre 18 a 24 milhões de toneladas de grãos, um aumento médio de 28%.
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O crescimento da produção agropecuária, em Matopiba, trouxe impactos positivos à economia do País. No entanto, os números do Produto Interno Bruto (PIB) mascaram as consequências do projeto para a conservação do Cerrado e suas comunidades tradicionais.
Matopiba abriga milhares de povos indígenas, quilombolas, agricultores familiares e populações que mantêm um modo de vida tradicional. São quebradeiras de coco, geraizeiros, vazanteiros e comunidades de fecho de pasto.
No projeto desenvolvimentista de Matopiba, esses grupos foram considerados invisíveis e os territórios dessas comunidades como espaços vazios, abertos à expansão do agronegócio.
No encontro com dona Raimunda, ela contou, emocionada, a mudança ocorrida naquele lugar, nos últimos dez anos, quando assistiu à chegada de grandes empresas do agronegócio, vindas do Sul do Brasil e do exterior, aumentando, cada dia mais, a corrida por terras.
Esse processo provocou degradação da vegetação, das águas, dos solos e também das condições de vida das comunidades. “Minha filha, a gente já foi muito feliz aqui, retirava da terra, do cerrado e dos rios tudo o que a gente precisava, frutas, ervas medicinais, criava animais, produzia nos nossos roçados. Hoje, tudo mudou, vivemos perseguidos, como fugitivos, em nosso próprio chão. O agronegócio devora tudo, devasta a natureza, envenena as águas e ainda quer destruir nossa comunidade”.
O relato de dona Raimunda contrasta com o discurso desenvolvimentista de políticos que “venderam” a ideia de Matopiba, como a região das oportunidades, do emprego e da renda, da ascensão de uma nova classe média no campo.
O governo brasileiro, atendendo aos interesses de empresários e investidores estrangeiros, facilitou a institucionalização de Matopiba. O Estado ofereceu todas as condições à expansão do agronegócio, no bioma Cerrado, como terra, água e leis favoráveis.
Também houve políticas de financiamento, assessoria técnica, extensão rural, pesquisa agropecuária, infraestrutura de escoamento, energia e toda sorte de benesses. Todavia, os pequenos produtores rurais, que ali viviam, não foram beneficiados por essas políticas.
Diferentemente do apregoado pelos políticos da época, Matopiba não beneficiou todos os brasileiros. Muito pelo contrário. Aumentou a concentração da propriedade da terra, excluiu a maioria da população desse projeto de desenvolvimento.
O modelo de desenvolvimento, adotado em Matopiba, não é sustentável, pois devasta vorazmente biomas e o bem-estar das comunidades. Milhares de pessoas foram colocadas em situação de extrema pobreza, como ocorreu com dona Raimunda e demais pessoas daquela comunidade rural, de Bom Jesus (PI).
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Um estudo da ONG Inglesa Oxfam, lançado em 2016, concluiu que menos de 1% das fazendas brasileiras concentra 45% da área rural do Brasil. Segundo o levantamento, nos municípios onde a agricultura é a principal atividade econômica, quanto maior a concentração fundiária, mais elevada é a concentração de renda. Isso também se reflete nos piores indicadores econômicos e sociais, do restante da população.
É o caso de Correntina, localizada em Matopiba, no Oeste da Bahia, exemplo dessas contradições do “desenvolvimento”. Naquele município, os latifúndios ocupam expressivos 75% da área total, dos estabelecimentos rurais agropecuários.
Durante anos, Correntina foi a campeã estadual de exportação de soja, figurando, todavia, nas estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como recordista em pobreza e desigualdade.
O Produto Interno Bruto (PIB) do município, se distribuído com a população estimada, em 2017, de 33 mil pessoas, daria quase R$ 40 mil por pessoa. Todavia, o Índice de Desenvolvimento Humano do Município (IDHM) era de 0,603, em 2010, considerado abaixo da média nacional (0,813).
Segundo Informações do Ministério do Desenvolvimento Social, em 2012, a pobreza atingiu cerca de 45% da população rural, daquele município.
Em Bom Jesus (PI), onde dona Raimunda vive com a família, a realidade não é diferente. O PIB per capita do município é estimado em mais de R$ 26 mil. Porém, com uma população de cerca de 24 mil pessoas, mais de 16 mil são de baixa renda e recebem auxílio de programas sociais, do governo federal, para garantir seu sustento.
O IDHM do município é de 0.668, também abaixo da média nacional, em 2010. Os números são extremos e mostram as enormes contradições do chamado “desenvolvimento”, em Matopiba.
A estrada para Bom Jesus (PI), por onde fui conhecer dona Raimunda, cortava um vasto horizonte de plantações de soja. No horizonte, uma imensidão verde de lavouras, que em pouco tempo, avançou sobre áreas de vegetação nativa, do bioma Cerrado, Amazônia ou Caatinga.
A monotonia era rompida pelo ruído de uma pequena aeronave, pulverizando, com agrotóxicos, as plantações de soja, cena comum, nos meses de colheita por ali. O vento levava aquela nuvem tóxica, para muito próximo da comunidade onde vive a agricultora. Uma cena chocante e um risco inaceitável à saúde da população vulnerável exposta, bem como ao meio ambiente.
A questão dos agrotóxicos é um tema bastante atual no Brasil. Nos últimos anos, houve um processo sistemático de flexibilização do uso desses "defensivos agrícolas". Em 2018, foi aprovada, em comissão da Câmara dos Deputados, Relatório sobre o projeto de Lei no 6.299, de 2002, visando flexibilizar regras referentes ao uso e controle de agrotóxicos no País.
A proposta é defendida pela bancada ruralista, na Câmara, e duramente criticada por organizações sociais e ambientalistas, bem como por entidades médicas, que a denominam de "PL do Veneno".
Dona Raimunda vive em uma das tantas comunidades de Matopiba, localizadas no epicentro da disputa ferrenha por terras, na última fronteira agrícola do País. O semblante da agricultora, mostra marcas de uma história de luta, na lida com a roça. Ela expressa as dificuldades enfrentadas, a partir da entrada de grandes empresas agropecuárias, grileiros e especuladores de terras, em Matopiba.
A agricultora conta que vivia em uma pequena casa, naquela comunidade, construída com muito trabalho e esforço. Tomou conhecimento de Matopiba, pela propaganda na televisão, prometendo trazer coisas boas à população daquela região, inclusive emprego e renda. Em pouco tempo, assustou-se com um grupo de homens, entrando em seu quintal, e fazendo medições no terreno.
“Eu fiquei preocupada e pedi para saírem do meu quintal. Os homens vieram, a mando de um fazendeiro local, se dizendo dono da terra. Meus pais e avós nasceram e sempre moraram aqui. Este chão pertence à minha família”, relatou a agricultora.
Aqueles funcionários eram pagos por fazendeiros e especuladores de terras, interessados em tomar posse das áreas ocupadas, pelas comunidades locais. As medições nas terras de dona Raimunda, para georreferenciar sua propriedade, estavam sendo feitas, como se aquela fosse a reserva legal, de propriedade de uma empresa agropecuária, a fim de registrarem no Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Esta é uma nova prática dos especuladores de terras, qualificada como “grilagem verde”. Como o novo Código Florestal prevê, 20% da propriedade rural precisa ter vegetação nativa conservada. Com isso, as empresas do agronegócio, apropriaram-se dos baixões, como área de reserva legal dos imóveis. Esse processo ocorreu, depois de desmatarem toda a sua propriedade, e a destinarem à monocultura.
Certo dia, dona Raimunda foi à roça colher arroz, com seu marido e os filhos. Ela ouviu um barulho de um trator e achou que estavam fazendo a estrada. Quando voltou, sua casa havia sido derrubada e estava em chamas.
“Queimaram tudo, minha filha. Ficamos sem nada, sem roupas, sem documentos, meus filhos chorando, vendo a casa sendo queimada. Foi um tempo muito difícil. Os grileiros se apossaram da nossa terra, com documentos falsos, dizendo serem os donos daqui. Passamos três anos dormindo em lonas e lutando na justiça, tentando reconquistar nosso pedaço de chão. Há alguns meses, reconquistamos o lugar de onde fomos expulsos, agora estamos reconstruindo a vida, começando do zero”, relatou a agricultora.
O episódio ocorrido com dona Raimunda ilustra a pressão fundiária das gigantes do agronegócio sobre os modos tradicionais de vida, dos povos e comunidades, nos brejos férteis do Cerrado.
Embora os moradores comprovem a antiga ocupação das terras pelos seus familiares, empresas pedem reintegração de posse das áreas, onde vivem as comunidades tradicionais. Para isso, os grileiros utilizam títulos de terras forjados e ilegais, respaldando a conivência do Estado e da Justiça com esse novo modelo de negócio bilionário em Matopiba.
Os jagunços, a mando dos grandes latifundiários, praticam assédio, ameaças, violência e agressões contra a população das comunidades tradicionais. Incêndios criminosos a casas e plantações, de pequenos produtores, bem como episódios de violência contra a população, tornam-se cada vez mais comuns à expulsão de famílias das suas terras.
Há nova dinâmica estabelecida pelo agronegócio, em Matopiba, cuja expansão da fronteira agrícola, é marcada pela ação da grilagem. Ou seja: pela apropriação irregular de terras, a partir de fraude e falsificação, de títulos de propriedades públicas ou de terceiros.
O processo ocorre aos poucos, com situações envolvendo pistolagem, grupos de extermínio, incêndios criminosos, destruição de casas e roças. A apropriação territorial, com uso de violência, foi o principal meio utilizado, para formação de grandes latifúndios.
A partir da delimitação de Matopiba, aumentou a ação de pistoleiros, que entram nas comunidades para amedrontar e expulsar as famílias. A grilagem e a violência no campo cresceram, diminuindo o bem-estar das comunidades, como ocorrido com dona Raimunda e sua família.
O mapa acima mostra o número de conflitos por terra, em Matopiba, com pessoas envolvidas, por município. São ações de resistência e enfrentamento pela posse, uso e propriedade da terra, bem como pelo acesso aos recursos naturais na região, em 2016, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Uma análise do mapa dos conflitos por terra na região, no período de 2000 a 2016, mostra que o crescimento da especulação de terras tem tornado alarmante o aumento dos conflitos com povos e comunidades tradicionais.
Se na questão agrária brasileira, a grilagem já era complexa, com a ação de grandes coronéis brasileiros, a situação piorou em Matopiba, à medida em que os donos das terras passaram a ser corporações globais do agronegócio.
A grande diferença é eles não manterem nenhuma relação direta com a terra, são desconhecidos e agem apenas através do capital estrangeiro. Mantém-se, todavia, a forma violenta de apropriação das terras e expropriação dos recursos naturais.
Era um perverso modelo de injustiça socioambiental, no qual grupos poderosos expulsam da terra os mais vulneráveis, dando origem ao avanço das fronteiras agrícolas, da pecuária e da mineração.
A desigualdade fundiária, embora tenha adotado modernas roupagens, continua sendo fonte inesgotável de conflitos sociais no País, com tendência de ficarem cada vez mais acirrados.
Matopiba já não atrai apenas empresários, interessados em aproveitar o potencial dos solos, para a produção agrícola ou pecuária. A região também trouxe especuladores de terras, cujos preços dispararam naquela região. Esse é mais um dos fatores a aumentar os conflitos agrários, com povos e comunidades tradicionais, que já viviam naquele lugar, antes da chegada do agronegócio.
A injustiça socioambiental também ocorre quando empresários do agronegócio, em Matopiba, combatem as pragas da soja, com agrotóxicos, e elas descem para as lavouras dos pequenos produtores rurais, dos baixões, que plantam feijão, mandioca, arroz, milho, fava e abóbora para seu autossustento.
Com a chegada de pragas, como moscas e lagartas, a produção de alimentos pelas comunidades diminui a cada dia. No roçado de dona Raimunda, onde antes se produziam diversos tipos de alimentos, hoje a safra se reduz a poucas sacas de feijão e milho, insuficientes à subsistência da família. Assim, a chegada do agronegócio aumentou o empobrecimento da família e da comunidade de dona Raimunda.
Outra situação de injustiça é quando povos e comunidades tradicionais estão na linha dos empreendimentos construídos para servir à produção do Matopiba, a exemplo da construção de barragens das usinas hidrelétricas.
Destaca-se também os casos de envenenamento das águas dos rios com agrotóxicos, deixando a comunidade local vulnerável ao uso de fontes hídricas contaminadas.
Na visita à comunidade de dona Raimunda, quando mencionei a cena da pulverização aérea da lavoura, com agrotóxicos, ouvi sua voz firme e embargada sentenciar: “Essas empresas contaminaram nossas águas, veja essa garrafa com água vermelha, é como está hoje a água do nosso rio, de tanto veneno usado na produção da soja”.
Há ainda a omissão do Estado, em relação à grilagem, quando atua em prol do agronegócio, em uma relação de conivência com os interesses das grandes empresas, negligenciando os procedimentos legais de acesso à terra, pelos moradores tradicionais.
É o caso de dona Raimunda, em Bom Jesus (PI). Há mais de 20 anos, a agricultura espera o desfecho do processo de reconhecimento oficial da posse das suas terras.
As figuras acima comparam a situação do desmatamento da vegetação de cerrado (destacada em vermelho), no município de Luís Eduardo Magalhães (BA), nos anos de 1990 e 2015. Ali, toda uma biodiversidade associada está sendo extinta, antes mesmo de muitas espécies serem identificadas pela ciência.
A região de Matopiba não é apenas um sério desafio a povos e comunidades tradicionais, mas também uma ameaça ao bioma Cerrado, sendo hoje a maior fronteira de desmatamento do Brasil, motivada, é claro, pela expansão do agronegócio, sobretudo da soja.
De acordo com relatório recente da Agroícone, a área plantada com soja, no Matopiba, cresceu 253%, entre 2000 e 2014. Foi um salto de 1 milhão para 3,5 milhões de hectares. Cerca de 68% dessa expansão ocorreu em áreas de vegetação nativa, sobretudo nos estados do Maranhão e no Piauí. De 2005 a 2014, a área de expansão agrícola, em Matopiba, aumentou 86%, enquanto a média nacional foi de 29%, no mesmo período.
O projeto de Matopiba se instalou rapidamente e gerou problemas sociais e ambientais. Entre 2015 e 2016, o desmatamento na região foi de 2 mil km2, quatro vezes maior, se comparado ao Arco do Desmatamento, área mais vulnerável da Amazônia Legal.
Dados recentes do Ministério do Meio Ambiente (MMA) mostram o desaparecimento de quase metade da cobertura vegetal original do Cerrado. Já foram desmatados mais de 975,7 mil km2 do bioma.
Em apenas quatro décadas, cerca de 50% das áreas nativas do Cerrado foram convertidas na implantação de atividades agropecuárias. O bioma ocupa uma área de dois milhões de km2, correspondendo a 24% do território nacional.
O Cerrado é o bioma brasileiro mais afetado, atualmente, por incêndios florestais. De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2017, identificou-se, no Cerrado, o maior registro de área territorial queimada. A área compreendeu mais de 252 mil km2, enquanto na Amazônia superou 223 mil km2.
As queimadas estão diretamente relacionadas ao desmatamento para expansão do agronegócio, especialmente em Matopiba. O processo de devastação ameaça solos, vegetação, atmosfera e toda biodiversidade do bioma.
Um estudo do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento, da Universidade Federal de Goiás (UFG) comprovou que, nos últimos quinze anos, a área queimada em Matopiba atingiu mais de 67 milhões de hectares. O total representa, aproximadamente, 52% do total de área incendiada em todo Cerrado.
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Do ponto de vista ambiental, a situação de Matopiba é bastante crítica. A conversão de vegetação nativa em terras cultiváveis, em grande escala, em Matopiba, já correspondem a quase metade (45%) do total de emissões de gás carbônico, emitido por todo o bioma Cerrado.
Foi o que mostrou um estudo realizado por pesquisadores de instituições dos Estados Unidos e do Brasil. As emissões de carbono, na região, já anulam cerca de 5% a 7% da aplaudida redução nas taxas de desmatamento, na Amazônia, por ano, durante 2011-2013.
Matopiba já perdeu parte considerável (27%) de sua cobertura vegetal. Isso se deve às suas condições favoráveis ao plantio de grãos (estações climáticas bem definidas, pelo menos quando não influenciadas pelo El Niño, áreas planas dos chapadões, solo desenvolvido e abundância de água).
O desmatamento enriquecem as empresas da região, por permitir a produção de toneladas de soja, de milho e de algodão. Prova disso é a safra recorde de 8,8 milhões de toneladas (2013/2014) e a previsão de quase triplicar esse resultado (22,6 de toneladas), até 2023.
Todavia, é necessário promover a expansão da agricultura e aumentar a produtividade, sem comprometer novas áreas de vegetação nativa. A integração lavoura-pasto pode ser um mecanismo para o bioma Cerrado ou a Amazônia.
É urgente a utilização de tecnologias disponíveis para evitar o desperdício de áreas abertas e promover a inteligência territorial, no uso e ocupação do solo. Isso significa uma melhor utilização de áreas já antropizadas, a fim de evitar o desmatamento, em novos territórios de vegetação nativa.
Diante do acelerado desmatamento no Cerrado, promover a conservação do bioma depende de ações urgentes, visando evitar a extinção da sua biodiversidade. É o bioma brasileiro com menor percentual de áreas sob proteção integral.
De acordo com o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC), apenas 8% do território do Cerrado está legalmente protegido, por unidades de conservação. Desse total, são 3% de Proteção Integral e 5% de Uso Sustentável, aspecto a facilitar a grilagem das terras e aumentar o risco do bioma.
O bioma Cerrado possui 11.627 espécies de plantas catalogadas, uma grande variedade de aves (837 espécies), de peixes (1.200 espécies), de répteis (180 espécies) e de anfíbios (150 espécies).
A maior parte de Matopiba pertence ao bioma Cerrado (90,94%), havendo também áreas no bioma Amazônia (7,27%) e na Caatinga (1,64%). Todavia, nos quatro estados integrantes de Matopiba, existem zonas de transição, entre diferentes tipos de vegetação, conhecidas como ecótonos.
As áreas de transição, presentes em Matopiba, englobam os ecótonos Cerrado-Amazônia, Cerrado-Caatinga, Cerrado-Mata de Cocais e Cerrado-Pantanal. Esses ambientes naturais singulares são extremamente frágeis às perturbações. As espécies presentes em determinado ecótono, normalmente, são adaptadas somente a condições e características ambientais, típicas dessa áreas.
Além disso, a biota dos ecótonos apresenta um alto nível de endemismo. São áreas pouco estudadas, de grande biodiversidade, com vulnerabilidade ecológica e econômica, podendo sofrer grande impacto, caso não ocorra sua devida proteção.
Para mais informações sobre políticas públicas para a convivência com a seca na Caatinga, conheça o livro "Um século de secas".
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A região de Matopiba conta com 46 unidades de conservação (12% da área total), um percentual considerado muito baixo, se considerada sua importância, em termos de biodiversidade e de recursos hídricos. O Cerrado é um bioma extremamente importante ao equilíbrio hídrico nacional, não é à toa que o bioma é conhecido como “berço das águas”.
Lá estão as nascentes que abastecem as três maiores bacias hidrográficas da América do Sul: a do São Francisco, do Tocantins-Araguaia e do Paraná. A bacia do rio São Francisco, de importância extremamente estratégica ao Nordeste, depende 97% das águas nascentes no Cerrado.
Além disso, em função das características dos seus solos e vegetação, o bioma Cerrado tem a função de facilitar o acúmulo de água, atingindo profundamente os lençóis freáticos, formando os aquíferos. Assim, o bioma alimenta três dos maiores aquíferos do mundo: Guarani, Urucuia e Bambuí.
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O agronegócio é, hoje, o maior consumidor de água no Brasil. Segundo a Agência Nacional das Águas (ANA), em 2015, a irrigação de lavouras consumiu 75% de recursos hídricos. A pecuária utilizou 9%, mais do que a indústria, e quase o mesmo, se comparado ao consumo humano urbano e rural (10%).
A irrigação é um dos métodos mais controversos do agronegócio. Em Matopiba, os empresários utilizam a irrigação na plantação, por pivô central, método que mais consome e desperdiça água.
Nos últimos 15 anos, tem havido um aumento exponencial do uso de irrigação na região. Toda essa água é retirada diretamente do rio São Francisco ou de seus afluentes, em função de o Oeste da Bahia representar um importante papel para essa bacia hidrográfica.
Além da contaminação das águas pelos agrotóxicos, o uso insustentável dos recursos hídricos, na produção agrícola, também diminui a recarga dos aquíferos e a vazão dos rios. Essa poluição afeta comunidades, cidades e a própria continuidade da produção de alimentos ou commodities.
Outro efeito direto da agricultura mecanizada é a compactação do solo, aspecto a dificultar a penetração da água para o subsolo. A baixa no volume causa o desaparecimento de rios, riachos e brejos.
A comunidade onde vive dona Raimunda sintetiza muitas das extremas contradições do modelo econômico, adotado em Matopiba.
Por um lado, uma nova fronteira agrícola consolida-se no País, baseada na agricultura empresarial de alta precisão e no aproveitamento máximo das terras, em monocultivos extensivos. Por outro, o “desenvolvimento” ocorre às custas da biodiversidade e dos recursos naturais do Cerrado, e dos direitos constitucionais dos povos tradicionais, ao seu território e modos de vida.
O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro, em extensão, e a savana mais rica do mundo. Essa riqueza natural precisa ser conservada. Os povos que vivem no bioma - indígenas, quilombolas, pequenos agricultores - têm o seu modo de vida tradicional ameaçado pelo desmatamento, causado pelo avanço de projetos insustentáveis, em Matopiba.
O grave processo de devastação do Cerrado avança a passos largos. Em apenas quatro décadas, o segundo maior bioma da América Latina perdeu metade da sua vegetação nativa.
Envolto pelo discurso de o bioma ser o “celeiro do mundo”, esses ambiciosos projetos agropecuários, amplamente incentivados pelos governos, mudam a cobertura e uso dos solos, no Cerrado. Com isso, deixam um rastro de forte concentração de terra e exclusão social.
Além da sua importância ambiental, o Cerrado é o lar de cerca de 12,5 milhões de pessoas, que vivem e dependem dos seus recursos naturais. Esses povos são considerados invisíveis pelos grandes projetos desenvolvimentistas, em Matopiba, não obstante, há anos, lutem pela regularização das suas terras.
A conivência do Estado com os grandes empresários do agronegócio tem favorecido a perversa grilagem de terras ocupadas, pelas comunidades tradicionais, e a violência contra as populações da região.
O aumento do desmatamento no bioma Cerrado deve ser urgentemente coibido, utilizando-se tecnologias de monitoramento ambiental, sobre mudanças no uso dos solos. É possível promover o uso inteligente e sustentável dos territórios, já abertos no processo de expansão agropecuária.
E você, acredita que é possível otimizar o uso da terra, em Matopiba, a partir da prática de uma agricultura inteligente? O que pode ser feito para reduzir os impactos do projeto sobre a vida dos povos tradicionais?
*Atualizado em: 10.07.2020, às 16h55.
LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].
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