Este post é escrito enquanto pessoas de vários países do mundo vão às ruas, em plena pandemia do coronavírus, protestar contra a violência racial, em relação às populações negras. As manifestações eclodiram depois da nefasta morte do segurança negro desempregado, George Floyd, durante uma abordagem policial em Minneapolis, nos Estados Unidos, no último dia 25 de maio de 2020.
Como os negros, diversos outros grupos sociais também são alvos de racismo, como judeus, asiáticos, ciganos, árabes, imigrantes e indígenas. O racismo estrutural é um processo histórico, que assentou os pilares de formação de determinadas sociedades e continua até hoje. São sociedades estruturadas, com base na discriminação, que privilegiam alguns grupos étnicos, em detrimento de outros. No Brasil, em países americanos e europeus, essa distinção beneficia os brancos, enquanto desfavorece negros e indígenas.
Há uma tendência de a maioria das pessoas, mesmo não se considerando racistas, continuarem a aceitar, reservada ou subconscientemente, explicações racistas, muitas delas equivocadas. Por isso, neste post, buscaremos explicações históricas para compreender por que povos indígenas do Brasil tomaram o atual destino.
Historicamente, essas sociedades indígenas foram acossadas e expulsas das suas próprias terras, mas resistiram à negação da sua cultura, história e identidade. Hoje, vivem refugiados, ameaçados em seus próprios territórios, com muitas incertezas quanto ao futuro, diante da crescente degradação dos recursos naturais e da emergência de uma legislação predatória.
Com base na obra “Armas, germes e aço”, de Jared Diamond, iremos analisar os três principais fatores que influenciaram no destino dos povos indígenas no Brasil. Como a invasão europeia levou ao extermínio de 90 a 95% da população originária das Américas? Qual o papel das epidemias nos rumos da história dessas comunidades? Como os vírus favoreceram a conquista da América pelos europeus? Que condições levaram às desigualdades tecnológicas e políticas entre os continentes, resultando em genocídios e doenças devastadoras contra os povos indígenas?
Com uma visão mais ampla da história, esperamos esclarecer teses racistas incorretas, que ainda prevalecem atualmente, em relação às sociedades indígenas.
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Germes letais, trazidos pelos colonizadores europeus às Américas, foram os maiores aliados no processo de conquista dessas terras. No território atualmente chamado Brasil, muitos povos originais foram dizimados por genocídios e epidemias, acabando superados, em quantidade, pelos descendentes dos colonizadores.
Mas por que os europeus, e não os africanos ou os indígenas, detinham as armas, os germes mais repulsivos e o aço, que possibilitaram a conquista das Américas, pelos europeus?
Uma explicação racista e equivocada da história diria que, supostamente, os europeus eram mais inteligentes que os demais povos. Todavia, a história seguiu diferentes rumos de desenvolvimento, para diversos povos, devido às diferenças no ambiente em que viviam, e não a distinções biológicas ou genéticas entre eles.
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Diferenças ambientais permitiram que a maior parte da antiga Eurásia, áreas das Américas e da África subsaariana desenvolvessem, gradualmente, agricultura, criação de gado, metalurgia, organizações políticas complexas e, em alguns casos, também a escrita. Enquanto isso, aborígenes australianos e nativos americanos continuavam caçadores coletores.
Foram também essas sociedades, consideradas mais avançadas, que reuniram as condições propícias ao surgimento de vírus e outros patógenos mortais. As doenças que emergiram desses germes perigosos se tornariam grandes aliadas dos europeus, no processo de conquista de terras além dos oceanos.
A troca de germes entre colonizadores e indígenas foi extremamente desigual. Muito mais nativos americanos foram mortos pelos patógenos europeus, do que por suas armas. Por outro lado, praticamente não havia germes letais nas Américas, esperando para infectar conquistadores europeus.
As doenças infecciosas precisam de uma população humana suficientemente numerosa e densamente aglomerada para os patógenos se desenvolverem. Por isso, são chamadas de doenças de multidão, por serem transmitidas, rápida e eficazmente, de pessoa para pessoa, deixando toda a população exposta, em pouco tempo.
Essas epidemias não conseguiram se sustentar, em pequenos grupos de caçadores coletores e lavradores primitivos, em função da baixa densidade populacional. Outros fatores importantes foram a pequena diversidade de animais (não humanos) disponíveis no ambiente das Américas e da prática de produção sistemática de alimentos, que pudessem facilitar a transmissão dos vírus aos humanos.
Portanto, salvo raras exceções, as sociedades indígenas não desenvolveram doenças epidêmicas próprias, que pudessem ser transmitidas aos colonizadores.
Nos grandes impérios incas e astecas, nas Américas, um exército, com poucos europeus, exterminou grande parte da população de milhões de indígenas, simplesmente por transmitirem suas epidemias. “Doenças misteriosas”, como a varíola, deram uma vantagem decisiva aos conquistadores, pois matavam os povos indígenas, enquanto poupavam os europeus, já imunes à infecção.
Na Amazônia, uma comunidade indígena inteira foi destruída por uma epidemia, trazida pelos colonizadores. A população nativa jamais tinha tido contato com aquele micróbio, contra o qual não havia desenvolvido resistência imunológica ou genética.
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Muito mais indígenas foram mortos pelos germes, importados para as Américas, do que pelas armas e espadas europeias, nos campos de batalha. As “doenças de brancos” minavam a resistência de grande parte dos indígenas e seus líderes, desmoralizando ainda os nativos sobreviventes.
Os nativos não entendiam por que os brancos não eram afetados pelas mesmas moléstias. Varíola, sarampo, gripo e tifo disputavam o primeiro lugar, entre os patógenos mais assassinos dos povos indígenas.
Por que os europeus conquistaram os povos indígenas das Américas, e não o contrário? Foi a produção de alimentos que fez surgir os instrumentos mais poderosos para a colonização europeia de outros povos. A prática da agricultura, em grandes áreas, permitiu a aproximação de humanos com animais, hospedeiros originais de vírus e outros patógenos perigosos.
Não há dúvida de que os europeus tinham uma grande vantagem, no início da colonização, em termos de armas, tecnologia e organização política complexa, sobre a maioria dos povos que subjugaram. Mas, sozinha, essa vantagem não é suficiente para explicar como, a princípio, tão poucos colonizadores brancos conseguiram vencer numerosos nativos das Américas e de outras partes do mundo.
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O domínio de outros povos não teria ocorrido sem a evolução dos germes europeus, presentes sinistros que os colonizadores espalharam, fatalmente, para outras partes do mundo.
O desenvolvimento de doenças epidêmicas ocorreu a partir da formação de densas populações humanas. Isso foi possível depois do surgimento da agricultura, há cerca de 10 mil anos, e se acelerou com o nascimento das cidades. A agricultura sustenta populações humanas muito mais densas que o estilo de vida dos caçadores coletores.
As condições sanitárias das cidades emergentes eram muito precárias, naquela época. Dessa forma, o desenvolvimento da agricultura foi a bonança dos patógenos. Mas as cidades tornaram as epidemias ainda mais graves, pois maiores aglomerações de pessoas, em situações inseguras de higiene, aumentaram exponencialmente a letalidade das doenças infecciosas.
Quando a população humana se tornou suficientemente grande e concentrada, passamos a desenvolver novas doenças, exclusivas da nossa espécie. Os patógenos foram transmitidos de animais para os humanos, com alterações em suas propriedades. Nesse processo de adaptação, os micróbios evoluíram para novos patógenos, fazendo emergir novas doenças, restritas à nossa espécie, consideradas grandes assassinas da humanidade.
Mesmo que a população pré-colombiana fosse numerosa nas Américas, onde existiram as cidades mais populosas do mundo, antes do início da colonização, por aqui não havia epidemias letais de multidão, que pudessem suplantar os colonizadores. Os poucos germes que existiam não eram fontes de doenças epidêmicas. Os vírus e outros patógenos, que causavam doenças humanas letais, estavam diretamente ligados à prática da agricultura e, por isso, ainda não existiam nas Américas.
Uma das explicações possíveis é que os três principais centros americanos não estavam interligados por um comércio regular, que permitissem a proliferação das doenças infecciosas, como ocorria na Eurásia e no norte da África. Porém, essa questão é insuficiente para explicar por que as Américas não tinham doenças epidêmicas nativas.
De fato, a principal diferença estava nas condições ambientais e na biodiversidade das Américas, principalmente de animais, que limitaram o desenvolvimento da produção de alimentos, em grandes áreas. Essa questão crucial será analisada no próximo tópico.
A principal razão de não existirem doenças epidêmicas nativas nas Américas, no início da colonização, foi a escassez extrema de espécies de grandes animais domésticos. Essa diferença possibilitou o desenvolvimento da agricultura primeiro na Eurásia, cujo ambiente contava com uma significativa diversidade de animais domésticos.
Da prática sistemática da agricultura, decorreram os principais instrumentos, que possibilitaram a subjugação de outros povos: os piores germes, as melhores armas, as tecnologias mais avançadas, organizações políticas complexas e a escrita.
As doenças epidêmicas têm origem nos animais sociais, que vivem próximos dos humanos, como vacas e porcos. Enquanto as Américas contavam apenas com pequenos animais locais, distribuídos em áreas geográficas específicas, a Eurásia contava com grandes espécies de mamíferos domésticos.
Pelo menos treze desses animais domésticos forneciam várias vantagens aos europeus: alimentos, transporte, suprimentos de vestuário, meios de transporte, veículos para guerra e energia para impulsionar a produção agrícola.
Muitos desses animais existiam na Eurásia, a partir dos quais surgiram as doenças de multidão, com patógenos que favoreceram a tomada das terras e dos recursos naturais, que antes pertenciam às comunidades indígenas.
Essa escassez de grandes mamíferos, nas Américas do Norte e do Sul, foi causada, em grande parte, pelas extinções das espécies, no fim do Pleistoceno. Se não fossem essas extinções, a história moderna poderia ter tomado um rumo diferente.
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Essas diferenças ambientais, mais precisamente, da diversidade de animais e plantas domesticáveis disponíveis, nas sociedades eurasianas e ameríndias, explicam o destino que tomaram os povos indígenas do Brasil.
As comunidades originárias receberam, fatalmente, o presente letal dos germes, decorrentes da criação de animais domésticos e da agricultura, na Europa. Do encontro com os colonizadores europeus, a história dos nativos tomou um rumo inesperado, após serem vítimas de extermínio, epidemias e genocídios.
Hoje, os povos indígenas ainda são constantemente acossados e empurrados das suas terras e florestas, para viverem em refúgios cada vez menores. Suas perspectivas de futuro são incertas, diante de frequentes ameaças e da alarmante degradação das águas, matas, solos, oceanos e sementes.
Os indígenas continuam sendo discriminados, por um racismo estrutural grave, institucionalizado na sociedade e nas decisões políticas, para atender a interesses de grupos econômicos poderosos.
A história dos povos indígenas, nas diferentes regiões do Brasil, é marcada por lutas e resistências, para manter um modo de vida sustentável, preservar seus costumes, os ensinamentos de seus ancestrais e sua identidade étnica.
É também uma história de sobrevivência, pois eram oprimidos, considerados “selvagens”, que supostamente não eram humanos, não tinham alma e iriam enfraquecer as raças. Mesmo assim, superaram tantos genocídios, extermínios e epidemias.
A dolorosa memória que as comunidades nativas guardam das epidemias é também exemplo de resiliência e lição para se protegerem da atual pandemia, do novo coronavírus. Na cosmologia dos indígenas, o vírus é uma resposta da natureza contra a forma como os seres humanos degradam os habitats naturais.
Esperamos que uma compreensão mais real e justa da história dos indígenas contribua para reduzir a violência racial contra eles. Que a valorização da diversidade étnica desses povos permita à sociedade brasileira: 1) Reconhecer o seu papel na construção do País e, 2) fazer justiça, como legítimos senhores das suas próprias terras.
LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].
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