As terras subúmidas secas do Agreste brasileiro estão se tornando “sertão”. É o que mostra um estudo inédito publicado pelo pesquisador Humberto Barbosa, fundador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis). A pesquisa mostra resultados impactantes, que podem trazer uma reviravolta à formulação de políticas para a região.
O artigo publicado no tradicional periódico científico Journal of Arid Environments reclassifica o mapa das terras secas no Brasil, ou seja, o percentual de áreas consideradas subúmidas secas (agreste), semiáridas ou áridas.
De acordo com a pesquisa, uma área total de 725 mil km2 do Semiárido brasileiro passou da condição de subúmida seca/úmida para semiárido, em apenas três décadas (1990-2022). Isso significa que 55% da região se tornou semiárida e passou a enfrentar, em condições normais, estiagem com duração de 5 a 6 meses.
E não para por aí. Os resultados do estudo também mostram que uma área estimada em cerca de 282 mil km2 do Semiárido brasileiro já se tornaram áridas. Isso corresponde a mais de 8% das terras da região, que já enfrentam naturalmente pelo menos 10 meses de estiagem.
Por outro lado, o estudo ainda demonstrou que poucas áreas semiáridas estão se tornando subúmidas secas (agreste), abrangendo pouco mais de 125 mil km2 ou cerca de 9% da região, com duração da estiagem de 7 a 8 meses.
Para alcançar esses resultados, o pesquisador criou uma metodologia que integra variáveis climáticas, da superfície terrestre e da atmosfera, analisando uma robusta base de dados de satélites de mais de 30 anos. As análises foram delimitadas às fronteiras do atual Semiárido brasileiro, conforme definição feita em 2021 pelo Conselho Deliberativo da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Condel/Sudene).
Neste post, vamos explicar os avanços trazidos pelo estudo, em termos de metodologias científicas para entender as secas e a desertificação no Semiárido brasileiro. Confira, a seguir, os 3 principais pontos da pesquisa e suas implicações para o atual contexto de aumento dos eventos climáticos extremos.
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Uma categoria especial de seca tem se tornado mais comum, à medida em que o Planeta fica cada vez mais aquecido: as secas-relâmpago (do inglês “flash drought”). São secas de curta duração e forte intensidade, combinadas com altas temperaturas, que costumam ocorrer durante o verão. Esses eventos climáticos extremos costumam durar apenas algumas semanas ou até um mês.
Pesquisadores de diferentes países têm se debruçado para entender esse novo tipo de evento climático extremo, mas ainda não havia um estudo específico sobre suas características na América Latina. No estudo do Laboratório Lapis, analisou-se pela primeira vez as características dessa categoria especial de seca no Semiárido brasileiro. Verificou-se que essas secas curtas costumam durar cerca de um mês na região.
O estudo analisou como as secas repentinas impactaram na biomassa e na umidade do solo, no período de fevereiro a março, no período de 2004 a 2022. A queda repentina nos volumes de precipitação e as altas temperaturas levaram à rápida perda da umidade do solo e da cobertura vegetal, com efeitos dramáticos para os ecossistemas da região.
Essas microssecas têm predominado em relação a outros tipos de seca (como a seca meteorológica, agrícola e hidrológica). Estão relacionadas com o atual estágio da mudança climática, que agrava os eventos climáticos extremos. O efeito combinado da redução na cobertura vegetal e do aumento das temperaturas, durante as secas, têm aumentado ainda mais a degradação e a condição de aridez na região.
Na pesquisa do Laboratório Lapis, identificou-se que municípios do agreste (subúmidos secos) estão se tornando semiáridos, um sinal climático agravado pelas secas-relâmpago na região.
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No Semiárido brasileiro, existem áreas áridas, semiáridas e subúmidas secas (agreste). Enquanto há municípios onde chove até 5 meses, há aqueles onde chove apenas durante um mês.
Um indicador amplamente utilizado para classificar a aridez é a razão simples entre a precipitação anual e a evapotranspiração anual de referência. Mas o grande problema é que esse indicador não representa o tipo e a intensidade da aridez em cada município.
Considerar dados médios não é a forma mais adequada para fazer a classificação climática da região. Essa metodologia não leva em conta as particularidades de cada localidade, as situações extremas de aridez (vários meses consecutivos de seca, durante o ano).
O estudo do Laboratório Lapis utilizou critérios do Índice de Aridez e do Regime de Aridez, adotado pelo Atlas de Áreas Áridas da América Latina e Caribe (UNESCO, 2007). Mas ao invés de processar o simples índice de aridez, usou uma nova metodologia, baseada nos critérios de classificação do Índice Padronizado de Precipitação e Evapotranspiração (SPEI). Trata-se de um dos mais avançados índices de seca utilizados hoje pela comunidade científica.
O SPEI permitiu analisar a precipitação por evapotranspiração, relacionadas à condição de seca (esse índice classifica as áreas considerando a evapotranspiração, temperatura máxima e precipitação). Com isso, criou-se uma metodologia mais abrangente do que a tradicional, que considera outras variáveis além da precipitação e evapotranspiração.
Os critérios baseados no Atlas da Unesco oferecem a seguinte classificação climática, com base no número de meses secos de cada localidade: árido (9 a 10 meses secos), semiárido (7 a 8 meses secos) e subúmido seco (5 a 6 meses secos). No estudo do Laboratório Lapis, foi analisado o número de meses do ano secos, com base nos critérios de classificação do SPEI.
No estudo, ao invés de utilizar apenas os dados de precipitação e evapotranspiração (tradicional índice de aridez), foi usado o SPEI, índice que permite analisar essas duas variáveis, além da temperatura máxima, para caracterizar a aridez climática de determinada região.
Dessa forma, a metodologia do estudo não se baseou na análise dos dados pela média, que geralmente mascara os extremos climáticos. Mas em quantos meses secos ocorreram, ao longo do período de 12 meses. Com isso, caracterizou-se o índice de aridez usando o SPEI, em uma série de dados de 30 anos, mapeando a aridez climática do Semiárido brasileiro.
Assim, a nova metodologia adotada na pesquisa do Laboratório Lapis, ancorada em uma robusta base de dados de satélite e de observação, oferece alternativa mais abrangente para caracterizar o índice de aridez do Semiárido brasileiro. Por consequência, tem potencial para contribuir para atualizar a própria delimitação da região.
Uma das vantagens da metodologia do novo estudo é que existe o problema da distribuição irregular dos dados e dos desertos de dados observados nas estações meteorológicas instaladas. Neste post, detalhamos o problema da dispersão das estações pluviométricas em algumas áreas do Semiárido brasileiro.
Dessa forma, áreas muito secas e áridas como os Cariris paraibanos e o Raso da Catarina, não foram analisadas pela média, mas pelo número de meses secos, usando o índice SPI. Para saber mais sobre as áreas áridas dos Cariris da Paraíba, conheça o Livro "Um século de secas".
A pesquisa do Laboratório Lapis identificou que, nos últimos 30 anos, mais de 8% das áreas semiáridas se tornaram áridas no Nordeste brasileiro. Mas aqui há uma diferença importante observada.
Diferentemente das áreas de agreste (subúmidas secas) que se tornaram semiáridas tendo como principal causa um sinal climático (aumento das secas-relâmpagos), a expansão da aridez ocorreu mais por uma questão antrópica.
É o caso de áreas do Matopiba, localizadas no sul da Bahia. Essas áreas se tornaram áridas em razão da intensidade da degradação das terras, que levaram à redução das chuvas. Com isso, houve uma mudança na classificação climática dessas áreas semiáridas que se transformaram em áreas áridas. Já não é apenas uma questão climática, relacionadas às secas, mas predominantemente de degradação das terras, com influência direta na aridez climática.
Para isso, o estudo fez o mapeamento das áreas degradadas do Semiárido, a partir de dados de satélites. Foi analisada a correlação entre chuva e cobertura vegetal, baseada em dados de alta frequência do Índice de Vegetação por Diferença Normalizada (NDVI). Nessa classificação das áreas degradadas, verificou-se a resposta da vegetação às chuvas.
Durante o período de 2004-2022, foram analisadas as áreas onde houve diminuição da cobertura vegetal e sua correlação com a redução das chuvas ou com a degradação pela ação humana. Com base em análises dos indicadores de umidade do solo, foi caracterizado o impacto da seca sobre o fator biológico da vegetação.
O estudo levou em consideração as secas, que pressionam a cobertura vegetal, tanto do ponto de vista antrópico quanto climático. As áreas onde houve aumento das chuvas e redução da vegetação é justamente as áreas degradadas ou desertificadas. Esse sinal antrópico levou à expansão das áreas áridas no Semiárido brasileiro.
De acordo com Humberto Barbosa, responsável pelo estudo, “o desenvolvimento do clima árido ocorre em diferentes áreas da região semiárida brasileira, particularmente na parte central da região, nordeste e sudoeste do semiárido brasileiro. Abrange áreas da Bahia, Pernambuco, Piauí e Paraíba. Isso confirma um aumento exponencial da seca extrema na região”, conclui.
“As terras secas do Semiárido brasileiro foram reclassificadas no estudo considerando uma dinâmica muito mais complexa do que está acontecendo, em termos de degradação. Também consideramos o aumento dos eventos climáticos extremos, como secas rápidas, em razão da mudança climática”, explica Humberto.
Dessa forma, a nova metodologia apresentada na pesquisa faz uma nova classificação climática da região, considerando não só a média do balanço hídrico, mas a especificidade da gravidade da seca em cada município.
“A integração de dados climáticos de seca com análises da degradação da cobertura vegetal e da atual situação da aridez atmosférica permitiu elaborar uma metodologia robusta. Essa metodologia permite classificar de forma abrangente a complexidade da atual situação da aridez climática da região”, declara o pesquisador.
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Os processos de degradação ou desertificação afetam 62% do Semiárido brasileiro, periodicamente afetado por seca intensas. Ao correlacionar as secas com a degradação das terras/desertificação, o estudo ainda identificou mudanças no balanço de energia da região, utilizando imagens do satélite Meteosat, com dados de frequência diária.
Como consequência, verificou-se uma redução significativa na formação de nuvens de chuva na região, principalmente nessas áreas degradadas. No estudo, foi analisado o quanto está chegando de energia da atmosfera para a superfície e o quanto ela está sendo devolvida (a chamada radiação de onda longa, energia que incide de volta para a atmosfera).
Como resultado, verificou-se um aumento do albedo, refletindo mais energia, em razão da perda da cobertura vegetal e de uma atmosfera mais seca. A fuga da energia da superfície forma menos vapor de água, reduzindo as nuvens sobre a região. Com isso, já se observa a dramática consequência da redução das chuvas na região.
A pesquisa detectou uma mudança preocupante na interação superfície-atmosfera: a degradação severa das terras tem contribuído para reduzir as chuvas. Com o aumento das secas, cresce ainda mais a degradação da superfície. É um círculo vicioso, que se retroalimenta, tendendo a expandir as áreas áridas e semiáridas do Brasil, caso os processos de degradação não sejam contidos.
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LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].
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