No último domingo, dia 26 de julho, Celso Furtado (1920-2004), um dos mais importantes pensadores brasileiros da economia, completaria 100 anos.
Em sua trajetória, Furtado atuou como um dos maiores intérpretes do Brasil, no século XX, dedicando sua vida a compreender o País e a traçar caminhos para a transformação nacional. O economista, nascido no município de Pombal, Sertão da Paraíba, foi o único brasileiro indicado ao Prêmio Nobel de Economia, em 2003.
Sua vasta obra intelectual, biografia e ideias inovadoras, reconhecidas mundialmente, continuam vivas e relevantes para a compreensão da história do Brasil.
Mais do que nunca, a obra de Furtado se torna atual, para se pensar um novo projeto de País, diante do atual cenário de devastação socioeconômica, provocado pela pandemia do novo coronavírus.
O contexto da pandemia, causada pelo novo coronavírus, renovou o debate sobre o papel do Estado na economia, evocando ideias de Celso Furtado para o centro da discussão política, no ano de seu centenário. Até mesmo economistas liberais, de diferentes países, recorreram à intervenção estatal, para restaurar a economia.
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Da profunda compreensão do processo de formação da sociedade brasileira, Celso Furtado explicou as raízes do subdesenvolvimento no Brasil, mostrando que essa condição foi construída historicamente.
Com isso, o economista acreditava que uma ação política, estratégica orientada, poderia retirar a economia brasileira da situação de dependência. Foi por isso que Furtado saiu da sua arena intelectual para entrar na vida política, com a missão de acabar com o subdesenvolvimento no País.
Um levantamento completo dos modelos de desenvolvimento implantados, no Nordeste brasileiro, durante mais de 100 anos, incluindo a contribuição de Celso Furtado, foi feito no Livro "Um século de secas". Para conhecer a obra, clique aqui.
Em 1949, Furtado integrou a recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), voltado para o desenvolvimento regional. A experiência de Furtado, na Cepal, sedimentou as bases de novas concepções sobre o desenvolvimento econômico, a partir de uma visão interdisciplinar e humana da economia.
Por volta de 1950, ele denunciou que o subdesenvolvimento não era uma etapa anterior ao desenvolvimento, mas uma condição estrutural e histórica. Por isso, deveria haver uma ruptura, nessa condição estrutural do subdesenvolvimento, possível apenas com transformações muito significativas na sociedade.
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Todavia, segundo o economista, essas mudanças estruturais na realidade brasileira requeriam uma vontade política nacional, sendo mais uma questão política do que econômica.
A vasta experiência técnica e política de Celso Furtado, no âmbito da Cepal, viria a ser aprofundada, na década de 1950, em sua atuação como responsável por políticas públicas de desenvolvimento econômico no Brasil.
Depois da sua experiência na Cepal, Furtado atuou no governo do presidente Juscelino Kubitschek, presidente que tinha como plano de ação “Cinquenta anos em cinco”. A proposta era promover um amplo desenvolvimento econômico e social no Brasil, durante um curto período (na época, um mandato presidencial durava cinco anos).
Celso Furtado foi responsável pela criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), uma das metas do governo Juscelino Kubitschek. Em seguida, ele também integrou o governo de João Goulart, na condição de Ministro do Planejamento.
O nome de Celso Furtado figurava na primeira lista de indesejados da Ditadura Militar. Com seus direitos políticos cassados, teve de deixar o País, em um doloroso hiato para sua atuação como estadista. Ele reapareceu na cena política brasileira, com a anistia e o início do processo de redemocratização do País, depois de longos anos no exílio.
O presidente Kubitschek, disposto a planejar políticas sistemáticas para minimizar os efeitos da seca, convidou Celso Furtado para “comandar” a “A Operação Nordeste”. Sua atribuição consistia em definir e dirigir, a partir de então, as prioridades políticas para a região.
Em fins da década de 1950, o economista colocou na pauta da política brasileira a problemática do Nordeste, marcada por graves desigualdades econômico-sociais.
A obra “A Operação Nordeste” (1959), de Celso Furtado, fundamentou a criação da Sudene. Aqui está o grande insight que Celso Furtado informa no Livro: “Foi observando as vicissitudes e disparidades do desenvolvimento na América espanhola – as razões pelas quais uns países se desenvolvem e outros não – que melhor percebi a natureza dos desequilíbrios regionais que hoje caracterizam o Brasil¨.
O projeto “A Operação Nordeste” consistiu em mensurar a crescente disparidade, nos graus de desenvolvimento, entre as regiões do Brasil. Para Furtado, o processo histórico de formação da economia do Nordeste explicava as causas dos profundos desequilíbrios regionais, no País.
Com o colapso da economia exportadora de cana de açúcar, o Nordeste apoiou-se no mercado do Centro-Sul, que se modificava internamente, com a industrialização. Com isso, as relações de dependência e subordinação do Nordeste foram se tornando patentes, como produtora de matéria-prima, para o centro industrial.
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Quando escreveu a “A Operação Nordeste”, Furtado chamava atenção que o crescimento econômico do Centro-Sul era bastante intenso, em relação ao do Nordeste, e alertava que esse cenário tendia a se agravar.
O diagnóstico precioso das causas dos principais desafios que afetavam o Nordeste, baseou-se na análise da consequência do processo de desenvolvimento, em escala global: a constante tensão entre, de um lado, um setor industrial desenvolvido, e de outro, uma economia agrária tradicional e obsoleta.
A partir da análise do processo de formação histórica da economia nordestina, Furtado acreditava que era preciso enfrentar o principal problema: a tendência ao desequilíbrio regional, razão de ser de “A Operação Nordeste”. Isso seria possível, em sua visão, a partir de uma ação estratégica, coordenada pelo Estado, para condicionar o processo histórico, alterando tendências de setores fundamentais.
A Sudene foi a nova institucionalidade, criada para transformar o diagnóstico de Celso Furtado em política de desenvolvimento, atendendo aos novos objetivos do Estado brasileiro: diminuir os desequilíbrios regionais da economia e tornar as áreas semiáridas mais resistentes às secas.
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O projeto de desenvolvimento para o Nordeste foi estruturado em três planos de ação: 1) criar uma economia resistente à seca – chamada “economia da caatinga” –, com aproveitamento do potencial das lavouras xerófilas; 2) deslocar a fronteira agrícola do Nordeste, colonizando outras terras, com clima mais ameno, a exemplo do Maranhão; 3) aumentar os investimentos industriais na região.
Para Furtado, a monocultura e o latifúndio, principais bases da economia agroexportadora do Nordeste, eram altamente concentradoras de renda. Este fato dificultou a formação de um mercado interno, sem o qual não seria possível passar da economia de exportação para a industrial.
Enquanto isso, estruturou-se no Semiárido um sistema econômico, baseado na agricultura de subsistência, altamente vulnerável às secas, que afetavam gravemente a produção de alimentos.
Segundo Furtado, o problema tendia a agravar-se. O aumento populacional na Caatinga transformou a seca, na grande calamidade social, dos últimos três quartos de século.
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Por outro lado, a seca tornava-se um grande negócio para os fazendeiros, que costumavam se aproveitar da vulnerabilidade social de trabalhadores rurais pobres, para aumentar suas riquezas. Outros setores econômicos também se beneficiavam dos recursos vindos do governo, durante os desastres naturais no Nordeste.
Por meio da Sudene, Celso Furtado procurou implantar um plano político estratégico de desenvolvimento para o Nordeste e instaurar reformas de base, na sociedade brasileira.
No entanto, suas tentativas de mudanças estruturais foram deliberadamente dificultadas, por um Congresso dominado por forças políticas tradicionais, com fortes laços latifundistas.
Esses grupos eram oriundos principalmente da maior parte da bancada nordestina, ligada à “indústria da seca”, que tiravam vantagens da manutenção do subdesenvolvimento.
O economista paraibano defendia que a reforma agrária no Nordeste não poderia consistir apenas em divisão de terras, mas em reorganização da sua economia agrícola. O processo deveria ocorrer de forma mais racional e desenvolvida, de modo a propiciar maior produtividade e melhores condições de vida aos agricultores.
Furtado representou um momento histórico paradigmático, de busca por transformações sociais no Brasil, por meio da mais ambiciosa das políticas públicas. Seu projeto para o Brasil propunha a efetiva transição de uma estrutura social semicolonial para a do desenvolvimento econômico.
Buscava promover a mudança, representada pela industrialização, no empenho de corrigir os desequilíbrios da área nordestina, em relação ao crescimento do País. Agregava-se à luta contra o atraso relativo e o sistema de interesses, constituído na política brasileira.
Furtado fazia isso por meio do enfrentamento da ponta mais resistente de coalizão, entre as formas do latifúndio e o domínio dos grupos poderosos, para garantir o imobilismo da aplicação dos recursos públicos federais. Esses grupos tradicionais impediram que fossem empreendidas mudanças significativas na organização econômica e social do Nordeste.
As forças conservadoras da política brasileira tornaram frustrada uma das raras tentativas do governo brasileiro de promover melhorias nas condições de vida da população vulnerável, na região semiárida brasileira.
O projeto de País, elaborado com maestria por Furtado, e apoiado pelo presidente Juscelino Kubitschek, era avançado demais para permear o arcabouço da atrasada elite política brasileira.
Esses grupos políticos conservadores atuavam no Congresso Nacional, atendendo demandas de grupos econômicos poderosos. A prioridade desses parlamentares não era reduzir as desigualdades sociais e promover desenvolvimento social para a população vulnerável do Nordeste.
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Como o primeiro ministro do Planejamento do Brasil, no governo João Goulart, Celso Furtado lançou, em 1962, o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social. No projeto, as reformas estruturais, propostas por Celso Furtado, não visavam beneficiar grupos de poder, mas alterar as perversas desigualdades sociais, institucionalizadas no Brasil.
O Plano, formulado por Furtado, apontava caminhos de intervenção racional do Estado, no processo de desenvolvimento humano, sobretudo a partir de reformas de base (agrária, tributária e social). Essas mudanças estruturais eram condição fundamental para a superação do subdesenvolvimento no Brasil e redução da histórica situação de dependência econômica.
Celso Furtado percebeu que fazer o essencial seria o grande segredo de uma economia de alta produtividade. Porém, no Brasil, costumamos nos limitar a transplantar soluções retrógradas e modelos econômicos ultrapassados. A proposta de Furtado trata de uma excelente ferramenta de trabalho, para sairmos dos discursos ideológicos e das falsas complexidades.
O Plano, elaborado por Furtado, no âmbito do Ministério do Planejamento, foi condenado pelas elites econômicas e políticas do Brasil. A proposta inovadora, de empreender mudanças estruturais no País, talvez pela primeira vez, chegou a ser considerada uma das razões para o golpe civil-militar de 1964.
As ideias do economista paraibano eram consideradas perigosas, pelo Regime Militar, por contestar a estrutura que sustentava o status quo e os sistemas de privilégios econômicos. O motivo é ter elaborado um projeto nacional, revolucionário para a sua época, pelo potencial de alterar as históricas estruturas de dominação e reduzir as desigualdades sociais no Brasil.
Furtado apontava dois eixos para superação do subdesenvolvimento: 1) Um Estado nacional comprometido com as demandas da maioria da população brasileira; 2) Um processo de industrialização acelerado, que tiraria o País da condição de mero exportador de produtos primários.
Vale lembrar que, ainda hoje, há uma grande dependência da economia brasileira, em relação à exportação de matérias-primas, em forma de commodities, às custas da biodiversidade nacional.
No centenário de Celso Furtado, retomamos o legado de quem elaborou um dos únicos projetos de desenvolvimento humano, contextualizado à realidade do Brasil, especialmente para a região Nordeste.
Na última segunda-feira, dia 27 de julho, a organização Oxfam divulgou um relatório, mostrando que, durante a pandemia, houve um crescimento de US$ 34 bilhões, nas fortunas dos bilionários brasileiros.
Ou seja, um seleto grupo de 42 super-ricos tiveram uma escalada de 27,6% no seu patrimônio, passando de US$ 123,1 bilhões, em março, para US$ 157,1 bilhões, no mês de julho.
A proteção dessa parcela bilionária contrasta com o cenário de desamparo dos grupos sociais vulneráveis, que enfrentam fome, desemprego e informalidade, sendo também as maiores vítimas fatais da Covid-19, no Brasil. Segundo a Oxfam, a “trajetória do vírus é uma fotografia das profundas desigualdades do País”.
É por isso que, no processo de recuperação da economia brasileira, a obra e pensamento de Celso Furtado são oportunos para inspirar os rumos de um novo projeto de desenvolvimento. Isso se torna relevante se considerarmos que o País carece de um projeto nacional, capaz de integrar todos os brasileiros.
Esse plano deverá reduzir o grande abismo das desigualdades sociais, propiciando melhores condições de vida aos seus cidadãos. Os pilares desse plano seriam a redução das perversas desigualdades sociais e o protagonismo do Estado, na garantia de direitos, a todos os cidadãos.
O pensamento de Celso Furtado, suas reflexões teórico-práticas sobre o subdesenvolvimento, sua atuação política para superação da pobreza e das injustiça sociais no Brasil, repercutem ainda hoje. Seu legado permanece vivo e é força motriz para transformação.
O que você acha mais importante na obra de Celso Furtado? Você acredita que seria possível, hoje, o avanço das ideias do economista na política brasileira? Haveria espaço para a redução das abissais desigualdades sociais no Brasil?
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*Post atualizado em: 04.08.2020, às 09h18.
LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].
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