El Niño e Planeta mais quente podem trazer seca incomum à Amazônia em 2023



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O atual evento de El Niño, associado ao agravamento da mudança climática, pode provocar uma seca incomum na Amazônia. O alerta é do meteorologista Humberto Barbosa, fundador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis).

Recentemente, o Laboratório Lapis publicou um mapeamento contundente: o estudo destaca que as áreas onde houve maior redução das chuvas na Amazônia, nas últimas duas décadas (2000-2021), coincidem exatamente com os locais onde houve maior degradação. Confira os detalhes da pesquisa neste post.

Segundo Humberto, esse é o primeiro evento de El Niño que coincide com um processo mais grave de aquecimento do Planeta (com temperatura média atual estimada em 1,2 °C acima dos níveis pré-industriais).

Gráfico dos anos de El Niño forte.

A mudança climática e um El Niño forte coincidiram apenas três vezes na história recente (nos eventos de El Niño 1982-1983, 1997-1998 e 2015-2016). O El Niño que chegou neste mês de junho é o quarto que coincide com o aquecimento global.

A partir de 1988, ficou evidente a atenção da comunidade científica com a mudança climática. Isso em razão das rápidas mudanças ocorridas na temperatura da Terra, durante um curto período, em comparação com períodos históricos anteriores. O alerta surgiu quando essas mudanças observadas foram associadas às projeções de aquecimento do Planeta, estimada para as décadas seguintes. Desde então, houve apenas dois eventos de El Niño, sendo agora o quarto que “abraça” a mudança climática.

“A questão é que agora há um agravamento maior do processo de mudança climática. Hoje, a temperatura média da Terra está bem maior do que no El Niño de 1998, isso em razão dos níveis de dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa na atmosfera. Mas o atual nível de aquecimento, agravado pelo El Niño, sinaliza para um período crítico de seca na Amazônia, já começando nos próximos meses”, explica o meteorologista.

Mapa destaca presença de El Niño forte_QGIS

De fato, nos eventos anteriores de El Niño forte, a temperatura da Terra estava bem mais baixa. De acordo com a Administração Oceânica e Atmosférica (NOAA), no El Niño de 2015-2016, a temperatura da Terra tinha aumentado 0,9 °C, em relação aos níveis pré-industriais. Já no El Niño de 1997-1998, a anomalia do aquecimento do Planeta era de 0,5 °C, enquanto no evento de 1982-1983, a anomalia era de 0,2 °C.

Esses dados se referem apenas ao período em que a mudança climática se tornou patente entre a esmagadora maioria dos especialistas. Se estendermos mais, para analisar o El Niño de 1982-1983, a temperatura da Terra tinha aumentado 0,3 °C, em relação ao período pré-industrial.

O El Niño é um evento natural, mas o aquecimento global, que causa a mudanças climática, é resultado da ação antrópica, associada às emissões de gases de efeito estufa, principalmente de dióxido de carbono. Normalmente, um evento de El Niño forte costuma aumentar a temperatura da Terra em até 0,2 °C. Todavia, os dados mostram o aquecimento global aumentando, mesmo na ausência do El Niño. Os eventos de La Niña apenas desaceleram um pouco a velocidade desse processo.

O El Niño, associado a um maior aquecimento global e ao aumento da degradação da Amazônia, tende a agravar as secas no bioma. De acordo com Humberto, há um sinal meteorológico que indica um evento extremo de seca ainda este ano, na Amazônia.

Embora seja muito cedo para prever exatamente como a Amazônia responderá ao El Niño 2023-2024, Humberto explica que durante as secas, as plantas ficam mais estressadas e a taxa de fotossíntese diminui, absorvendo menos CO2 da atmosfera.

Inclusive neste post, destacamos como a “memória” das secas repetidas têm afetado a Amazônia. Pesquisas comprovaram que as secas intensas causam danos fisiológicos às plantas, que não conseguem se recuperar mesmo após a volta da normalidade climática.

>> Leia também: El Niño chegou e pode atingir intensidade sem precedentes

Previsão sazonal indica extremos climáticos de seca na Amazônia

Mapa da previsão sazonal na Amazônia_QGIS

De acordo com a previsão meteorológica sazonal do Laboratório Lapis, há um sinal contundente de seca na área central da Amazônia, no período de agosto a novembro. Você pode observar no mapa da previsão acima, a diminuição das chuvas prevista para novembro, justamente o período em que a estação chuvosa deveria voltar.

A previsão do Lapis considera os dados atuais de um conjunto de variáveis oceânicas e atmosféricas, principalmente a tendência de aquecimento da superfície do mar. Mas a previsão de seca para a Amazônia pode piorar nos próximos meses, a depender da intensidade do El Niño.

O ano de 2010 foi excepcionalmente seco na Amazônia, enquanto 2011 foi excessivamente úmido. Os extremos climáticos estão mais frequentes na região, com eventos de secas intensas seguidos de anos muito chuvosos. Os incêndios são um fator significativo na liberação de carbono da floresta tropical. Com a seca, o aumento das queimadas acelera a liberação de carbono na atmosfera.

A seca que atingiu a Amazônia brasileira em 2010 ocorreu em razão do aquecimento anormal no Atlântico Norte. Com isso, a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT) ficou mais afastada da linha do Equador, reduzindo as chuvas tanto naquele bioma quanto no Nordeste brasileiro.

A degradação e a redução histórica nas chuvas aumentam o risco de savanização da Amazônia. A savanização é o processo irreversível de transformação de áreas ocupadas por densa vegetação em desertos parciais, tendo como principal agente a ação humana.

Mapa destaca áreas com vegetação degradada no Brasil. Fonte: Lapis.

Mapa destaca vegetação degradada na Amazônia (2001-2021). Fonte: Lapis.

O aumento das secas, decorrente de uma maior frequência de eventos climáticos extremos, têm elevado os impactos de degradação da floresta amazônica. Basta verificar, na pesquisa divulgada pelo Laboratório Lapis, a coincidência entre os locais onde houve maior perda da vegetação, nas últimas duas décadas, foi justamente onde se registrou uma redução histórica nos volumes de precipitação.

Em anos muito secos, a Bacia Amazônica se torna uma fonte emissora de carbono para a atmosfera. Essa perda de carbono amplifica os efeitos das mudanças climáticas, em um dramático processo que se retroalimenta. Com a associação entre os impactos do El Niño e a mudança climática, essa situação tende a piorar. E ainda vale lembrar que a Amazônia está mais degradada, mais populosa e com vegetação mais fragmentada pelos danos das últimas secas.

Globalmente, o El Niño é a maior causa das secas. Durante esse padrão climático, as secas se tornam mais intensas, de início mais rápido e aumentam o risco de incêndios florestais. É o caso de regiões como a Amazônia e o Nordeste brasileiro, Indonésia e Austrália. Por exemplo, no El Niño de intensidade fraca de 2019-2020, a fumaça dos incêndios no leste da Austrália afetou o Hemisfério Sul, a ponto de bloquear o Sol e pode ter exacerbado as condições subsequentes do La Niña.

Enquanto isso, as chuvas torrenciais são mais intensas em outras regiões, com maior risco de inundações, principalmente no Sul do Brasil, bem como na costa do Peru e Equador. Condições muito úmidas também podem ocorrer, em alguns casos, na Califórnia.

Ciclone extratropical no Sul do Brasil_QGIS_El Niño

Ciclone no Sul do Brasil, 16 de junho. Fonte: NOAA/GOES_EAST.

O aumento dos eventos climáticos extremos no Sul do Brasil já é resultado dessa mudança no padrão climático. Na sexta-feira, dia 16 de junho, a passagem de um ciclone extratropical pela costa da região provocou chuvas intensas e ventos fortes, no Rio Grande do Sul. O desastre atingiu 41 municípios, provocou 13 mortes e 4 pessoas estão desaparecidas. Além disso, há cerca de 3,7 mil pessoas desabrigadas e 700 desalojadas.

Esses eventos extremos ocorrem em razão das águas mais quentes que o normal, no Atlântico Sul, como demonstrado no mapa acima. Além disso, a Antártida está com anomalias de temperaturas mais quentes, influenciando nesses eventos extremos no Sul e Sudeste, além do extremo sul da América do Sul. Essas temperaturas oceânicas mais quentes, associadas à instabilidade do ar, alimentam frentes frias que provocam esses ciclones. 

Águas mais quentes no Atlântico Sul_El Niño_QGIS

No Livro “Um século de secas”, os autores analisaram a relação entre os eventos de El Niño e as secas no Semiárido brasileiro, durante o período 1901-2016. Eles concluíram que em cerca de 70% dos casos, houve associação direta entre o El Niño e as secas. Por outro lado, em quase 30% dos casos, não houve coincidência entre eventos de seca e de El Niño na região.

Outro fator que influencia fortemente nas secas no Semiárido brasileiro são as temperaturas da superfície do Atlântico Sul, principalmente do Nordeste brasileiro. Quando essas águas estão mais frias do que a média histórica, próximo à costa do Nordeste brasileiro, essa condição interfere no padrão de chuvas da região.

>> Leia também: Chuvas podem chegar mais cedo e antecipar plantio no Centro-Sul

El Niño pode tornar 2023 o ano mais quente da história

Mapa mostra a presença do El Niño_QGIS

O ano de 2016 foi o mais quente já registrado na história, em parte por causa do forte evento El Niño. Mas 2023 pode superar os recordes de temperaturas da Terra registrados naquele ano. Os anos mais quentes, em termos de temperatura média global da superfície, geralmente ocorrem no final dos eventos de El Niño.

Os eventos de El Niño tendem a atingir o pico no mês de dezembro, embora seus maiores impactos atmosféricos possam ocorrer apenas em fevereiro. O último grande El Niño foi em 2016-2017, enquanto um El Niño fraco ocorreu em 2019-2020.

No último dia 08 de junho, cientistas da NOAA confirmaram a chegada do El Niño. O evento climático tem potencial para se tornar forte, com previsão de pico no verão de 2024. Neste post, explicamos porque o El Niño pode atingir intensidade sem precedentes.

Embora ainda haja pouca evidência de que a mudança climática tenha alterado o fenômeno El Niño Oscilação Sul (ENOS), os impactos do El Niño são amplificados pelo aquecimento global. É o caso da intensificação dos eventos climáticos extremos, como secas e enchentes, já comuns durante as fases de El Niño ou La Niña.

De forma geral, o El Niño tende a tornar o Planeta mais quente. A influência desse fenômeno, combinada com os impactos do aquecimento global, significa grandes mudanças para o clima global. É o caso de consequências como altas temperaturas, secas extremas e grandes inundações.

Gráfico mostra influência do El Niño em 2023.

O gráfico abaixo mostra a temperatura média diária da Terra (a 2 metros de altura), com dados atualizados em 14 de maio deste ano. São dados do NCEP/GFS, com uma reanálise global. O produto de monitoramento foi elaborado pelo Laboratório Lapis.

Os dados atuais são comparados com o ano mais quente da história (2016) e com a média dos últimos trinta anos. A linha tracejada do gráfico mostra a média climatológica, calculada no período de 1979-2000. Quando falamos em clima, estamos nos referindo indiretamente à média histórica.

Você pode reparar que os primeiros 15 dias de junho foram os mais quentes do que se tem registro na história. Comparando as curvas do gráfico, observe como o clima da Terra se modificou ao longo de várias décadas.

Este ano, já houve ondas de calor severas e recordes, de Porto Rico à Sibéria até a Espanha. O calor escaldante no Canadá ajudou a provocar grandes incêndios florestais, que cobriram com fumaça tóxica nos céus de Nova York e Washington, na semana passada.

O El Niño causa desordem no clima global, aumentando as chances de ocorrerem eventos climáticos extremos em várias regiões, como secas intensas em alguns locais, ou inundações em outros. Também provoca ainda mais calor ao Planeta, já em processo de aquecimento, ampliando as consequências da mudança climática. Para regiões como o Nordeste brasileiro, esses eventos extremos se traduzem em secas prolongadas, aumentando a degradação ambiental e a dramática desertificação.

>> Leia também: Oceanos mais quentes: o que esperar para o clima brasileiro?

Oceanos mais quentes levam a variações no clima global

Mapa do aquecimento dos oceanos sob o El Niño

O aquecimento também atinge os oceanos, afetando diretamente o clima global. No último mês de abril, também foram identificados recordes históricos na temperatura dos oceanos globais. Os dados observados ultrapassaram os registros alcançados nesse mesmo período, em 2016, durante o forte evento de El Niño. As informações foram divulgadas neste post.

De maneira geral, prevalece atualmente uma tendência de aquecimento dos oceanos. Embora algumas regiões oceânicas estejam mais frias que o normal, predominam, no cenário global, pontos críticos com altas temperaturas oceânicas.  

Essa situação única afeta o clima global de forma incomum. Com o Pacífico Norte mais quente que o normal, o Atlântico Norte e o resto do globo ficam mais quentes, em média. 

Em função da energia gerada pelos gases de efeito estufa, absorvida pelos oceanos, formam-se zonas de calor nos oceanos. Dessa forma, durante o El Niño, o calor está tão intenso em outras áreas oceânicas quanto no Pacífico. Não se identifica mais, como era observado nos anos 1980, um contraste com outras regiões oceânicas que ficavam um pouco mais frias, durante o evento de El Niño.

O meteorologista Humberto Barbosa, do Laboratório Lapis, explica que normalmente outras regiões oceânicas ficavam mais frias, havendo um contraste maior com a presença do El Niño. Todavia, este ano, vários oceanos já estão com temperaturas recordes, quando esse padrão climático acabou de se firmar no Pacífico.

“Essas fontes de calor nos oceanos impactam em todo o sistema da atmosfera, criando fluxos de umidade para algumas regiões, potencializando os eventos climáticos extremos, provocando muita chuva em algumas áreas e secura em outras”, completa o meteorologista.

As temperaturas recordes da superfície do mar nas regiões extratropicais do Pacífico Norte e Sul foram consequências tanto do La Niña quanto do aquecimento global. Os “rios atmosféricos” resultantes causaram chuvas torrenciais no litoral norte do estado de São Paulo e no norte da Califórnia. Neste post, explicamos o fenômeno que provocou chuvas extremas em São Paulo, levando à morte de 65 pessoas, em fevereiro deste ano.

Mapa mostra Planeta mais quente_QGIS_El Niño

As mudanças na temperatura média da superfície do mar podem ser observadas na imagem acima, comparando suas variações em dezembro de 2022 e maio de 2023. Você pode observar uma transformação surpreendente em todo o Pacífico equatorial central, com um forte aquecimento (El Niño) na costa do Peru e do Equador.

O resfriamento moderado no leste do Pacífico Norte está associado à série de tempestades que atingiram a costa oeste dos Estados Unidos e o noroeste da Austrália, devido ao ciclone Ilsa.

>> Leia também: Erosão do solo ameaça rendimento das colheitas e sequestro de carbono

Mapeamento mostra alta proporção de áreas com redução das chuvas nas últimas duas décadasMapa da redução da precipitação anual na Amazônia_QGIS

O mapa da tendência de precipitação anual, durante o período 2000-2020, foi gerado a partir do monitoramento por satélite, do Laboratório Lapis. Os dados foram estimados por um índice que representa o nível de concordância entre três bases de dados globais: TerraClimate, ERA5 e Global Precipitation Mission (GPM).

As tendências de chuva, no território brasileiro, foram calculadas sobre a precipitação total anual, usando um Teste de Mann-Kendall, para cada produto, e classificando o resultado como negativo, positivo ou não significativo (estável).

Os três mapas resultantes foram combinados para mostrar áreas de concordância, que geram um nível mais alto de confiança. O resultado do mapeamento mostra tendências de redução e aumento das chuvas, a partir da distribuição espacial da precipitação, ao longo das duas décadas analisadas.

O marrom mostra áreas com redução de chuvas, nas últimas duas décadas, que compreendem grande parte do Brasil, inclusive regiões com forte vocação para a agricultura. Já os tons de azul mostra a tendência de aumento da chuva, que se restringe a áreas muito pontuais da Amazônia. As áreas na cor creme mostram estabilidade nos volumes de chuva, em relação à média histórica.

No mapa, destaca-se uma alta proporção de área com redução de chuvas. Esse dado contribui para compreender a diminuição das chuvas como mais um dos vetores de degradação, permitindo a separação entre as forças induzidas pelo clima ou a degradação da vegetação pela ação humana.

O El Niño varia de intensidade (fraca, moderada e forte). Nas décadas mais recentes, houve registro de apenas três eventos fortes de El Niño: 1982-1983, 1997-1998 e 2015-2016. Resta saber se o atual evento se juntará a eles, em termos de intensidade. Mas junto com os efeitos crescentes do aquecimento global, qualquer El Niño pode ser muito perturbador para o clima global.

O aumento da degradação na Amazônia brasileira (por desmatamento e queimadas), o agravamento da mudança climática (com risco de exceder superar o limite de 1,5 °C), a influência do El Niño sobre as secas e a absorção de carbono mais lenta pela floresta amazônica, são os fatores dramáticos para a preservação do bioma e para o clima global.

>> Leia também: Secas extremas repetidas podem reduzir sequestro de carbono na Amazônia

Mais informações

O conteúdo deste post foi aprofundado no Livro "Um século de secas"

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*Post atualizado em: 19.06.2023, às 09h01.

COMO CITAR ESTE ARTIGO:

LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].

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