O atual evento de El Niño foi classificado recentemente pela Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) como de intensidade forte. De fato, comparando com a média histórica, a temperatura média da superfície do Pacífico está com anomalia de pelo menos 2 ºC acima do normal.
Mas a situação do El Niño sempre depende da influência das altas temperaturas do Pacífico na atmosfera (acoplamento oceano-atmosfera) ou da resposta do El Niño Oscilação Sul (ENOS) ao Pacífico mais aquecido. Ou seja, de como a circulação atmosférica vai responder a eventos extremos de El Niño ou La Niña, presentes na superfície do Pacífico.
E é justamente nesse ponto que o meteorologista Humberto Barbosa, fundador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), identificou um comportamento incomum da atmosfera ao El Niño no Pacífico, nas últimas semanas.
Ele comparou o atual evento de El Niño forte com o El Niño de mesma intensidade ocorrido em 2015, quando trouxe severos impactos ao clima do Brasil. Constatou-se uma grande diferença na resposta da atmosfera ao atual evento de El Niño, sendo um alerta para os meteorologistas que fazem previsões climáticas sazonais.
A imagem acima mostra a circulação típica durante um evento de El Niño. Observe que a elevação do ar sobre o Pacífico central e oriental causa mais tempestades e precipitação, reduzindo a pressão sobre a região.
Ao mesmo tempo, o ar está descendo no Pacífico ocidental, causando um clima estável e condições de alta pressão.
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Os mapas, fornecidos pelo Laboratório Lapis, mostram a anomalia do potencial de velocidade dos ventos, no topo da atmosfera (200 hPa). Destaca-se um comportamento incomum na atual resposta da atmosfera ao Pacífico mais aquecido que o normal. Essas informações, obtidas a partir da análise do acoplamento oceano-atmosfera, alertam para certa cautela na previsão dos impactos do El Niño no Brasil, especialmente durante o verão 2023-2024.
A imagem acima mostra a situação do El Niño forte, no período de junho a outubro de 2015. Naquele evento, persistiu um forte movimento ascendente (formação de nuvens e presença de chuvas) na área central do Pacífico equatorial, em particular na costa oeste da América do Sul. Essa condição impediu a formação de nuvens e inibiu as chuvas na região.
Por outro lado, houve um fortalecimento do movimento de descida, no oeste do Pacífico, principalmente na região da Indonésia e no nordeste da Austrália. Esse é o padrão típico de El Niño, influenciando na atmosfera.
A segunda imagem mostra a situação atual do El Niño, com destaque para a previsão em dezembro de 2023, olhando a partir da resposta da atmosfera (velocidade dos ventos na alta atmosfera). Você pode observar a falta de movimento ascendente nas principais regiões do El Niño Oscilação Sul (ENOS).
“Isso é bastante atípico, sugerindo uma impressão digital mais fraca do El Niño em 2023, na circulação atmosférica básica. Desde o último mês de junho, temos observado uma massa de ar seco muito forte sobre o Brasil, potencializada com mais força na Amazônia brasileira, devendo continuar pelo menos até dezembro próximo. É uma condição muito diferente da observada em 2015, quando não foi vista essa massa de ar seco sobre o Brasil”, explica Humberto.
A última análise do Sistema Global de Assimilação de Dados (GDAS) mostrou predomínio de movimento de ar ascendente, de julho a outubro deste ano (90 dias). Você pode ver, no mapa abaixo, uma forte anomalia positiva marcada na área central do Pacífico.
A anomalia da velocidade dos ventos, apresentada no período de julho a outubro, apoia condição de maior aquecimento nas regiões do ENOS, empurrando águas mais quentes para o leste. É um padrão tipico de El Niño, observado no período de julho a outubro deste ano. Todavia, nas últimas semanas, identificamos um padrão distinto da anomalia da velocidade dos ventos, no topo da atmosfera (200 hPa), previsto para continuar até o próximo mês de dezembro.
Os ventos alísios globais podem iniciar ou parar determinada fase do ENOS, derrubando as camadas superficiais do oceano e alterando as temperaturas. São ventos constantes e persistentes, soprando em direção (e ao longo) do Equador, em ambos os hemisférios. Para que um El Niño se desenvolva, é necessário haver uma “explosão” de ventos do oeste ou ventos alísios fracos.
Para entender o atual desenvolvimento do El Niño, é importante comparar com referências de eventos anteriores de intensidade forte, com análises orientadas por dados. O El Niño de 2015-2016 foi um dos mais fortes registrados nos últimos 145 anos. Foi comparado desde o início com o El Niño de 1997-1998, o mais intenso já registrado na história.
Durante o El Niño 1997-1998, a temperatura média da superfície do Pacífico atingiu 2,3 °C acima da média (anomalia positiva), pelo período de outubro a janeiro. Uma anomalia positiva significa que a temperatura da superfície do mar está mais alta do que o normal, desviando-se da média histórica dos últimos 30 anos. O fenômeno El Niño surge quando essa anomalia atinge 0,5 °C acima da média, sendo considerado um El Niño forte a partir da anomalia de 1,5 °C.
O gráfico compara o atual evento de El Niño (2023) com eventos fortes anteriores. No eixo horizontal, cada ponto no gráfico de dispersão mostra as anomalias da temperatura do Pacífico equatorial, para todo o mês de setembro, no período 1979-2023. No eixo vertical, estão as anomalias do El Niño na região 3.4, de novembro a janeiro.
A linha vermelha vertical do gráfico mostra a anomalia na temperatura do mar, em setembro de 2023. É possível comparar o El Niño atual com os eventos anteriores de El Niño forte (1982-1983, 1997-1998 e 2015-2016). Observe que as anomalias na temperatura estavam bem mais quentes do que 2023.
Fornecemos essa informação orientada por dados para mostrar que não existem dois eventos de El Niño semelhantes. As previsões do que pode acontecer também não significam certezas. O fato é que o El Niño deste ano só começou no mês de junho, mais tarde do que em 2015-2016, que surgiu em março. Portanto, deve-se ter muita cautela antes de se afirmar que o evento será muito forte, durante o verão.
Além do aquecimento anormal do Pacífico central, característica inicial para a formação do El Niño, há outros fatores que influenciam na intensidade do fenômeno. A observação de uma diferença importante na resposta do ENOS ao Pacífico mais aquecido sugere a possibilidade de um El Niño menos intenso do que têm indicado as previsões no Brasil.
“Um dos fatores é o efeito combinado da atmosfera e dos oceanos mais quentes que o normal, em razão da piora no aquecimento global. Além disso, o impacto do vulcão submarino Hunga-Tonga, em janeiro de 2022, ainda não foi devidamente dimensionado nas previsões. Essa atividade vulcânica injetou muito vapor de água na estratosfera, que ainda permanece”, pondera Humberto.
Os dados atuais da superfície do Pacífico sempre são comparados com a “média histórica”, ou seja, com a média das temperaturas dos últimos 30 anos, quando o Planeta estava em uma condição de menor aquecimento. Houve uma piora na situação do aquecimento global e o Planeta atualmente está mais quente.
No El Niño de 1997-1998, a anomalia de aquecimento do Planeta era de 0,5 °C acima dos níveis pré-industriais. O atual evento de El Niño acontece em um contexto de aquecimento global mais grave, no qual a temperatura média do Planeta já está em 1,2 °C. Cerca de 90% desse excesso de calor, provocado pelo aquecimento global, é absorvido pelos oceanos.
O El Niño redistribui esse calor extra do oceano para a atmosfera. Neste post, explicamos a tendência incomum de superaquecimento de todos os oceanos globais, além do Pacífico, observada este ano.
O El Niño é caracterizado pelo aquecimento anormal das águas na área central do Pacífico, mas o Laboratório Lapis identificou uma resposta atípica do ENSO, nas últimas semanas. O atual evento forte de El Niño já se diferencia de outro evento climático similar, do qual temos registro histórico, em um cenário muito próximo do atual, que é o El Niño de 2015.
“Nota-se uma diferença muito grande entre o atual evento forte de El Niño e o de 2015, especialmente na Amazônia brasileira. O fenômeno potencializa muito mais as secas na porção norte da América do Sul. Essa massa de ar seco gerou rapidamente uma seca e altas temperaturas na Amazônia, como identificamos já no mês de junho", explica Humberto.
"Essa condição deve permanecer pelo menos até dezembro. É como que tivesse havido uma antecipação das condições típicas do verão no Centro-Norte do Brasil. O Atlântico Norte mais quente piorou ainda mais a situação”, afirma o meteorologista.
Outro aspecto importante das mudanças nos oceanos é a altura do nível do mar. Na imagem abaixo, você pode observar anomalias na altura do nível do mar. O aumento do nível do mar no Pacífico tropical é um sinal claro de que o El Niño está ativo. A imagem mais recente obtida a partir do satélite Sentinel-6, mostra como estava a situação no final de outubro.
Para o clima brasileiro, tão importante quanto acompanhar o El Niño, é entender a situação do oceano Atlântico, que banha toda a região. A temperatura do Atlântico é responsável por regular a intensidade e o deslocamento da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), fenômeno formador de chuvas na Amazônia e no Nordeste do País.
Nesse momento, o Dipolo do Atlântico está muito desfavorável às chuvas no Centro-Norte do Brasil, em razão das águas mais quentes que o normal no Atlântico Norte.
As bandas de nuvens carregadas da ZCIT deslocam-se para a região onde as águas estão mais quentes. Com o Atlântico Norte mais quente que o normal, ventos alísios de sudeste mantêm a ZCIT muito afastada da Amazônia, inibindo as chuvas. Para entender o que é o Dipolo do Atlântico, acesse este post.
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Há ainda outras forçantes que interferem nos impactos do El Niño, como as queimadas e o desmatamento, que aumentam a degradação das terras em todos os biomas brasileiros. A situação é pior no Centro-Norte do Brasil, que enfrenta impactos mais profundos do El Niño, como grandes secas e calor tanto na Amazônia quanto no Nordeste.
Inclusive, recentemente, uma pesquisa do Laboratório Lapis identificou que a degradação severa das terras já interfere na resposta da atmosfera, reduzindo a formação de nuvens de chuva na região. O impacto maior é nas áreas áridas já existentes no Nordeste brasileiro.
Diante dos dados observados pelo Laboratório Lapis, é como se estivesse havendo uma possível desconexão do modelo clássico do ENOS. Isso traz incertezas sobre como a atmosfera vai se comportar diante do Pacífico mais aquecido e de como serão as previsões climáticas, a partir de janeiro de 2024.
O mapa abaixo mostra a previsão da anomalia de temperatura oceânica, para o período de dezembro deste ano a fevereiro de 2024. Para essa previsão, os modelos se baseiam nas atuais condições de temperaturas dos oceanos. O Pacífico está mais quente que o nomal, indicando a presença de um El Niño forte.
Com base na atual configuração da temperatura dos oceanos, o mapa abaixo mostra a previsão climática sazonal para abril de 2024. Foram utilizados dados do modelo climático do European Centre for Medium-Range Weather Forecasts (ECMWF).
Os atuais modelos climáticos têm indicado o desenvolvimento futuro do El Niño na mesma direção, justamente em razão das atuais condições de aquecimento anormal do Pacífico.
Observe no gráfico abaixo a previsão oceânica multimodelo do Copernicus, para o verão 2023-2024, com destaque para um forte evento El Niño, expandindo-se por todo o Pacífico tropical. Um evento dessa magnitude seria intenso o suficiente para ter uma resposta profunda da atmosfera. Mas o que temos visto atualmente é uma interação incomum do ENOS ao Pacífico mais aquecido.
Mas diante do atual comportamento incomum da atmosfera ao aquecimento do Pacífico, Humberto ressalta que será a complexa relação entre pressão, ventos e correntes oceânicas que vai definir a previsão climática para o verão de 2024.
“Todas essas forçantes trazem incertezas para os modelos matemáticos, que fazem as previsões climáticas. Diante da constatação de uma resposta atípica da atmosfera à onda de calor no Pacífico, deve-se ter muita cautela antes de se afirmar que o evento será muito forte, durante o verão”, arremata o meteorologista.
Por enquanto, o El Niño continua forte. Há 35% de chance de este evento se tornar historicamente forte, para o período de novembro deste ano a janeiro de 2024. As previsções têm indicado que o El Niño deve continuar durante o verão no Brasil, com probabilidade de 62% de permanecer de abril a junho de 2024.
Pelas observações recentes da resposta atípica do ENOS ao Pacífico mais quente, conclui-se que nesse momento o El Niño está forte e grave, mas pode perder força. A intensidade do El Niño e sua duração ainda são imprevisíveis para 2024. A partir de janeiro do próximo ano, ainda não há dados conclusivos sobre como a atmosfera pode responder ao Pacífico mais aquecido.
O fato é que o ENOS está respondendo de uma forma muito mais intensa, se comparado com 2015. O atual impacto do El Niño na Amazônia brasileira está pior do que naquele ano. A situação do El Niño está grave desde junho deste ano e deve continuar assim, pelo menos até o próximo mês de dezembro, principalmente em termos de impactos no Centro-Norte do Brasil.
Todavia, o comportamento atípico observado na atmosfera sinaliza a possibilidade de haver uma possível desconexão da atmosfera com o Pacífico, com impactos cimáticos ainda imprevisíveis.
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O conteúdo deste post foi aprofundado no Livro "Um século de secas". Uma das análises mais completas sobre a região semiárida brasileira, a obra explica a influência do El Niño e do oceano Atlântico em cada seca do Nordeste brasileiro, no último século. Foram usados produtos e séries temporais, baseadas em dados de satélites, com destaque para a maior seca do século, que afetou a região no período 2011-2017.
Gostou do post? Você acredita que teremos um El Niño forte em 2024 ou o clima pode surpreender? Deixe seu comentário.
LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].
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