Na última década, os desastres registrados com maior frequência no Brasil estão relacionados à precipitação. Os extremos climáticos mais comuns ocorreram ora pelo excesso de chuvas (tempestades e inundações) ora pela sua escassez (seca ou estiagem). De acordo com um estudo publicado pela Confederação Nacional de Municípios (CNM), no período de 2013 a 2023, os desastres causaram mais de R$ 639 bilhões de prejuízos no Brasil.
Durante o período, a agropecuária concentrou os maiores prejuízos, estimados em cerca de R$ 357 bilhões (ou 56% do total de prejuízos por desastres climáticos no Brasil). Desse total, a agricultura foi o setor mais afetado, concentrando um total de R$ 271 bilhões em prejuízos, equivalentes a 42% do total no Brasil. Em segundo lugar, está a pecuária, com prejuízos estimados em mais de R$ 86 bilhões, ou cerca de 13% do total no País.
O levantamento foi feito a partir da análise de informações dos decretos de Situação de Emergência ou Estado de Calamidade Pública, apresentados pelos municípios. Cerca de 40% dos decretos foram por danos e prejuízos com seca e estiagem, enquanto quase 30% ocorreram pelo excesso de chuva.
A pesquisa ainda demonstrou que o Nordeste foi a região mais atingida por seca e estiagem, durante os 11 anos analisados, representando 73% do total de decretos por desastres climáticos nessa categoria. Em segundo lugar, está o Sudeste, com mais de 13% dos decretos registrados por seca/estiagem.
No outro extremo, a região Sul foi a mais afetada pelo excesso de chuvas, correspondendo a 40% desse tipo de desastre climático no País. Novamente, o Sudeste se situa como a segunda região com maior número de desastres por chuvas extremas, totalizando 25% nessa categoria.
O estudo da CNM não abrange o recente desastre por chuvas extremas no Rio Grande do Sul, ocorrido no último mês de maio, cuja dimensão dos danos humanos e prejuízos materiais ainda estão sendo estimada.
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Recentemente, após o desastre por chuvas extremas no Rio Grande do Sul, veio à tona o Relatório “Projeto Brasil 2040”, publicado em 2015, pela Presidência da República. O estudo buscou estimar como as mudanças climáticas iriam afetar os setores econômicos, especialmente a agropecuária, no horizonte de 2040, 2070 e 2100. O objetivo foi orientar estratégias de prevenção e adaptação climática.
As simulações apresentadas no Relatório, no cenário climático projetado para 2040, já previam muito mais chuva na região Sul, com cheias e inundações mais frequentes. Ou seja: como foi amplamente divulgado pela imprensa, as recentes enchentes e inundações no Rio Grande do Sul estavam previstas.
No estudo, projetou-se também aumento das temperaturas para as demais regiões brasileiras, sendo que o Centro-Oeste poderá ficar muito mais quente do que as demais áreas do País. Já o Norte e Nordeste tendem a enfrentar mais secas.
Para o setor agropecuário brasileiro, há um grave problema relacionado a essas projeções: é que 65% da área plantada no Brasil corresponde apenas ao cultivo da soja, estando concentrado em uma única planta, altamente vulnerável à mudança climática.
Apesar dos avanços na pesquisa agronômica, especialmente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a mudança climática representa um alto risco para as áreas plantadas. A cultura da soja será a mais impactada pelo aquecimento global, inclusive municípios com alto risco climático (secas e altas temperaturas) podem parar de produzir esse grão.
Um fator agravante são as secas-relâmpago. A "seca-relâmpago" é um extremo climático de curta duração e forte intensidade, associada às altas temperaturas. Essa nova tipologia de seca, decorrente da mudança climática, afeta severamente vegetações, ecossistemas e prejudica as colheitas. Esse novo tipo de seca tem sido estudado no Brasil, de forma inédita, pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis).
O agronegócio brasileiro é baseado em um modelo de monocultura que compromete os solos e a biodiversidade, além de necessitar cada vez do uso de insumos, como fertilizantes e agrotóxicos. Por isso, diante dos impactos da mudança climática, é preciso começar a se falar em um plano de transição agrícola no País.
Apesar das projeções para o clima nos próximos anos, pouco se avançou em adaptação climática no Brasil. E embora muito se fale em transição energética, você não escuta falar em transição agrícola ou agropecuária.
A pesquisa agronômica não está direcionada à construção de um novo modelo de agricultura, mais diversificada e resiliente ao clima. Mesmo com o melhoramento genético e o aumento da produtividade, potencializado pela Embrapa, o setor é altamente vulnerável aos profundos impactos da mudança climática.
Desde o final de março, o Laboratório Lapis monitora uma seca-relâmpago em toda a área central do Brasil, prejudicando setores do agronegócio no Sudeste, Centro-Oeste e em Matopiba. A Amazônia brasileira enfrentou uma seca severa em 2023 e secas repentinas atingem atualmente o sul da região.
Enquanto isso, no Rio Grande do Sul, produtores ligados ao agronegócio tiveram suas propriedades destroçadas pelas enchentes, em razão das chuvas extremas do início de maio. A perda não foi apenas das lavouras, como normalmente acontece. As enchentes causaram enormes prejuízos, como destruição dos equipamentos agrícolas e até mesmo a camada superficial do solo foi levada pelas enxurradas.
Governos que subsidiam essas perdas ou mesmo seguradoras do setor agropecuário perceberam que secas e enchentes agora são comuns, e não mais apenas um evento climático excepcional.
O próprio cultivo da cana-de-açúcar para produção de biocombustíveis é muito vulnerável aos impactos da mudança climática. A grande aposta do Brasil na produção do Etanol para a transição energética é apenas um atalho ou um caminho mais fácil escolhido pelo País.
De acordo com o meteorologista Humberto Barbosa, fundador do Laboratório Lapis, os biocombustíveis não resolvem definitivamente o problema das emissões de gases que provocam aquecimento global. O pesquisador participou como autor-líder do Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), das Nações Unidas, com foco em desertificação e degradação das terras.
“Em um cenário já observado de redução das chuvas no Brasil, que ficará mais grave nas próximas décadas, a questão da água se torna central. Com uma maior frequência das secas e altas temperaturas, a tendência é aumentar o uso da água para irrigação, acirrando os conflitos e a pressão sobre os recursos hídricos, que estarão mais limitadas”, pontua Humberto.
Assim como a soja, a matéria-prima para os biocombustíveis também é produzida em um modelo de monocultura agrícola, com perda da biodiversidade, comprometimento dos solos e necessidade cada vez maior de insumos.
Vale lembrar que o maior problema da adaptação climática no Brasil não está relacionado às energias. De acordo com a Associação Brasileira de Energia Eólica e outras tecnologias, cerca de 73% da nossa matriz energética é constituída pela produção de energia solar fotovoltaica (6%), eólica (15%) e hídrica (52%).
O maior problema da adaptação à mudança climática no Brasil se concentra em parte do setor agropecuário que ainda opera em um modelo predatório. São poderosas empresas de propriedade de produtores rurais que devastam florestas e degradam as terras, como alternativa para aumentar sua produção.
Uma pesquisa feito pelo Laboratório Lapis identificou a relação entre degradação das terras e redução das chuvas no Brasil, nas últimas duas décadas. O mapa abaixo mostra as áreas que tiveram redução das chuvas, durante o período. Acesse o post completo sobre a pesquisa.
A resistência desses setores às medidas de adaptação climática e de proteção ambiental ocorre porque está alicerçado na conversão de novas terras para aumentar a produtividade, com prática de queimadas e desmatamento. Assim, quando governos planejam zerar o desmatamento até 2030, entram em rota de coalisão direta com esse poderoso setor, que financia os arautos do negacionismo climático no País.
Nesse sentido, como pensar na transição para um novo modelo agrícola, menos concentrado na monocultura, quando o atual modelo parece se tornar inviável climaticamente? Como implementar adaptação climática na agricultura nesse momento de aparente ruptura/colapso?
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Os eventos extremos mais comuns, decorrentes da mudança climática, estão relacionados às mudanças nos padrões de chuva e temperatura. De acordo com o estudo da CNM, os desastres por extremos climáticos podem ocorrer de forma súbita ou gradual.
De um lado, estão as tempestades e ciclones, que costumam causar enchentes, inundações, alagamentos, enxurradas e deslizamentos. Os impactos negativos desse tipo de desastre são imediatos ou de evolução rápida, como danos humanos e materiais, suspensão de serviços, prejuízos econômicos e degradação ambiental.
Por outro lado, estão os desastres de evolução gradual, como a seca e estiagem, com impactos negativos lentos, que se agravam ao longo do tempo. É o caso do comprometimento do abastecimento de água potável e dos grandes prejuízos à agropecuária.
A adaptação climática envolve desde iniciativas mais complexas até medidas simples. Fortalecer os sistemas de alerta precoce do risco de eventos extremos e implementar mudanças nas práticas agrícolas são iniciativas facilmente aplicáveis. Mesmo assim, a maioria dos países não implementou adequadamente as medidas de adaptação climática.
Muitas vezes, governos, iniciativa privada e sociedade civil se deparam com eventos extremos repentinos, sem contar com uma infraestrutura mínima para minimizar os seus impactos. As consequências costumam ser devastadoras, principalmente para a população mais vulnerável.
Em quase todo o estado do Rio Grande do Sul, chuvas extremas do final de abril até o início de maio deste ano, causaram um colapso nas infraestruturas e na normalidade da vida social.
Nas primeiras semanas após o desastre, mais de meio milhão de pessoas ficaram desabrigadas e dependendo de ajuda humanitária. Sociedade civil e governos ainda tentam administrar as urgências, ao mesmo tempo em que planejam a reconstrução dos municípios mais destruídos pelas enchentes e inundações.
A proporção dos danos humanos e enormes prejuízos à população, ao ambiente e às infraestruturas ainda será dimensionada. Para saber mais sobre o extremo climático no Rio Grande do Sul, acesse este post.
Com relação às secas extremas nas regiões brasileiras, a realidade não é diferente. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constatou que, em 2020, apenas 30% dos municípios brasileiros possuíam um Plano de Contingência e/ou Prevenção para a Seca.
Esse Plano se constitui em um conjunto de ações coordenadas e infraestrutura necessária para o enfrentamento de um possível período de seca. Vale lembrar que ações coordenadas e planejadas são fundamentais para adaptação à seca e para evitar que esse evento climático se torne um desastre, especialmente em pequenos municípios.
Naquele ano, a seca atingiu cerca de 53% dos municípios brasileiros. Comparando com 2017, observou-se um aumento no número de municípios que passaram a enfrentar seca e uma alteração significativa na distribuição regional das localidades afetadas.
Apesar do aumento na frequência da seca, a pesquisa tornou evidente a falta de capacidade institucional dos municípios para enfrentar eventos de secas extremas. As vulnerabilidades dos municípios para enfrentar eventos climáticos extremos e problemas ambientais complexos foram analisadas com metodologia específica no Livro "Um século de secas".
É que enquanto em 2017, a região Nordeste, conhecida pelas secas frequentes e intensas, foi a que apresentou a maior proporção de localidades afetadas por seca (82%), na região Sul, apenas cerca de 10% dos municípios enfrentaram secas.
Já em 2020, o cenário da seca mudou no Brasil: a região Sul foi a mais afetada pela seca, com mais de 70% dos seus municípios, sobretudo em razão do La Niña. O Rio Grande do Sul apresentou a maior proporção de municípios atingidos por seca no País, estimada em quase 90%. Já o Nordeste ficou em segundo lugar, com cerca de 65% dos seus municípios registrando seca.
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A transição agrícola deveria fazer parte das estratégias de adaptação à mudança climática no Brasil. Inclusive, a agropecuária é uma das áreas essenciais para prevenção a desastres por extremos climáticos de secas ou inundações.
Ainda há setores do agronegócio resistentes às mudanças. Porém, os formuladores de políticas, junto com a sociedade civil, não deveriam considerar o assunto como tabu ou simplesmente ignorá-lo em seus relatórios de planejamento.
A transição agrícola parece não fazer parte dos planos de inovação e sustentabilidade da neoindustrialização para o desenvolvimento econômico. A pesquisa e a tecnologia deveriam ser altamente estimuladas, visando construir a transição para um modelo de agricultura mais sustentável, diversificada e com menos desigualdades sociais.
Para aprofundar o tema deste post, assista ao "Seminário sobre Gestão de Secas no Brasil", promovido pela Confederação dos Engenheiros Agrônomos do Brasil (CONFAEAB), em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Na ocasião, foi discutido o tema "As mudanças climáticas e a frequência dos desastres naturais".
LETRAS AMBIENTAIS. [Título do artigo]. ISSN 2674-760X. Acessado em: [Data do acesso]. Disponível em: [Link do artigo].
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